Geralmente, quando estou entre amigos ou conhecidos que não compartilham de meu dia a dia na dança, ouço falas que despertam em mim um certo incômodo. Falas do tipo: “Nossa, ballet clássico te prende muito”, ou “Não gosto de ballet porque a pessoa não tem liberdade, ele é muito disciplinante”, ou ainda “Prefiro outra modalidade de dança que não tenha uma disciplina tão rígida”. Confesso que, num primeiro momento, tenho vontade de dar uma resposta bem atravessada; afinal, estão prejulgando (e mal) a minha área de trabalho, meu campo de estudo. Não saio por aí falando mal daquilo que não conheço, mas, logo em seguida a esse meu momento de inquietação interna, respiro (fundo), tomo fôlego e brinco: “É, realmente ballet é muito difícil! ”
Disciplina como virtude humana é trabalhada nas escolas de ensino regular desde o início da vida estudantil de nossas crianças. Ela está presente na rotina instituída em cada turma, no convívio entre alunos e professores, nas atividades de dentro e de fora de sala de aula, na confecção de trabalhos de artes, na resolução dos problemas matemáticos, na escrita de uma redação e até mesmo nas regras e acordos durante uma brincadeira. A competência disciplina desenvolvida e exercitada constantemente possibilita ao estudante experimentar sua vida de forma mais significativa seja dentro ou fora da escola, pois, quando se mantém o foco em alguma atividade (formal ou informal), aproveita-se mais o processo, aprende-se mais com os erros, e o “sabor” do êxito se torna mais real.
No ambiente do ballet clássico, o desenvolvimento e a compreensão da disciplina se igualam à dinâmica das escolas e da vida dos estudantes. Nas aulas, essa virtude não é tratada como algo intransigente, responsável pela formatação de todos de maneira homogênea. Tratada como habilidade a ser evoluída, a disciplina serve ao ballet possibilitando ao estudante perseverar nesta arte repleta de “altos e baixos”, “idas e vindas”. O professor que busca ensinar valores e não regras duras e fechadas abre possibilidades em sua sala de aula. Não basta apenas dizer que “o coque deve estar impecável; as meias e sapatilhas, limpas e o uniforme, completo” ou que o estudante precisa “ter pontualidade inglesa, ouvir enquanto o professor explica, estar presente em aulas e ensaios, sabendo portar-se durante os mesmos” sem que o próprio estudante compreenda a real importância disso durante seus estudos de ballet clássico. Tudo é relevante não porque o professor é chato ou quer tudo da sua maneira, mas porque, já afirmava Nietzsche[1], só se alcança um fim verdadeiro e significativo se o artista inclui em seu “fazer arte” o hábito (de repetir até conseguir), a obediência (de estar disponível aos seus próprios impulsos e vontades de fazer acontecer) e uma habituação à disciplina, que torna viável os dois passos anteriores descritos.
Em minha prática como pedagoga de ballet clássico e coreógrafa/ensaiadora, procuro basear minha dinâmica de trabalho nessas três vertentes nietzschianas (por assim dizer). Tento por inúmeras vezes, mostrar aos meus alunos, sejam adolescentes ou crianças, que a habilidade disciplina precisa ser desenvolvida dentro deles; que precisam ter como hábito o trabalho constante do físico aliado ao aprimoramento da técnica e que o respeito, o zelo e a atenção que tanto prezo em sala podem (e devem) ser levados para a vida fora da aula, pois a maioria das situações diárias e cotidianas pelas quais passamos nos exige um conhecimento interpessoal e intrapessoal[2] tamanho que nos permite crescer constantemente.
Assim, caros amigos e colegas de trabalho, não desprezemos, muito menos menosprezemos, o valor e a influência que a disciplina ensinada no ballet clássico pode exercer na vida de nossos estudantes. Tenhamos cada vez mais vontade de ensinar, não somente a técnica, mas o valor que ela pode agregar (somar) de positivo à vivência de nossas crianças e adolescentes. Afinal:
Ele salva-se pela arte, e através da arte salva-se nele – a vida!
(Friedrich Nietzsche)
[1] NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre Educação. Tradução, apresentação e notas: Noéli Correia de Melo e Sobrinho. Rio de Janeiro. Ed PUC-Rio. São Paulo: Loyola, 2003. Explico de forma simples estes três conceitos desenvolvidos pelo filósofo nesta obra. Recomendo a leitura do livro por se tratar de uma análise/discussão sobre cultura, educação e escolas, realizada nas conferências Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino de 1872, que se mostra muito pertinente a nossa realidade. Fica a dica! [2] Teoria das inteligências múltiplas de Howard Gardner – psicólogo e professor norte-americano, autor de cerca de 20 livros sobre a teoria de que o ser humano possui mais de um tipo de inteligência e que, portanto, os processos de aprendizagem também devem ser individualizados. As inteligências interpessoal e intrapessoal referem-se à capacidade de entender a si mesmo e ao outro, relacionar-se bem e ser comunicativo.