“Dança não se aprende nos livros: é um ensino calcado no ensino. São corpos que confiam segredos a outros corpos. Não segredos difusos, mas uma ciência, a dos músculos.”
“Para mim, meu primeiro balé foi Symphonie pour um Homme Seul.1955. Foi feita sob música formidável, impressionante, violenta”.
Nasceu Maurice Berger, filho do filósofo Gaston Berger, do qual foi muito próximo, estando sempre rodeado de intelectuais e artistas. Seu nome artístico é uma homenagem á Molière, pois Béjart era o nome da mulher do famoso dramaturgo. Fascinado por um recital de Serge Lifar, um dos maiores bailarinos do século 20, decidiu por consagrar-se inteiramente à Dança, desde jovem, muito jovem. Fez-se bailarino e coreógrafo simultaneamente, e várias de suas obras coreográficas foram dançadas primeiro por ele . Formou duas importantes companhias de dança na França: Ballet de l’Etoile e Ballet Theatre de Paris. Usou a técnica clássica como base de seu trabalho mas, nunca se fechou a nenhum movimento de fato contributivo para a orquéstica, sejam os de vanguarda, sejam os tradicionais.
Em 1959, foi convidado por Mauricio Huisman, diretor do Theatre Royal de la Monnaie, de Bruxelas, para o desafio de montar uma nova versão coreográfica do já célebre balé Sagração da Primavera (Nijinsky-Stravinsky), com elenco formado por sua companhia e a do Teatro, que acabou resultando em uma nova e definitiva companhia sob a sua direção: o Ballet du XXe siècle, que chegou a ter um elenco permanente de 90 bailarinos profissionais, com dedicação exclusiva, e, entre os seus maiores momentos, levou à cena Missa para um tempo presente, Nona Sinfonia (Beethoven), Pássaro de Fogo,Bolero (Ravel) entre muitos mais.
Béjart trabalhava a dança como a configuração e a realização cênica da música, o que o levava a um permanente contato com os compositores de vanguarda de sua época, como Pierre Henry, Pierre Boulez, Stokhausen, e o nosso grande Villa-Lobos (L’Etranger), além do já citado Stravinsky e muitos outros. Coreografou também obras de Mozart, Bach, Malher, Vivaldi, Chopin, Beethoven, Ravel e músicas tradicionais de vários países e culturas.
Amava os bailarinos e criava para a personalidade artística de cada um dos principais talentos com quem trabalhava, elevando-os, quase sempre à condição de estrelas internacionais da dança.. Notáveis foram os casos de Jorge Donn, das brasileiras Laura Proença, Aurea Hammerli e Jania Batista, e dos bailarinos Suzanne Farrell, Tânia Bari, Tessa Beaumont, Michele Seigneuret Rita Poelvoorde, Shonach Mirk, Gil Romain, Patrick Belda, Germinal Casado, Jean Babillé, para ficarmos só nos mais conhecidos. Coreografava também para grandes estrelas da dança, já consagradas, como Nureyev, Márcia Haydee, Maya Plissetskaya, Sylvie Guillem, Marie Claude Pietragala e Barishnikov.
“Ser tradicional é a pior das coisas, quando deveria ser um elogio! Tradição é pesquisa. Ou seja, a transmissão, através dos tempos, de certos fatos e atitudes. O que não deve ser insípido: transmitir a mensagem dos criadores do passado é fazer como eles, e o que fizeram eles? Procuraram, arriscaram, rebelaram-se, eram frequentemente mal vistos ou malditos. Jamais copiaram. Beethoven não copiou Mozart, Schubert não copiou Beethoven, Wagner não copiou Schubert. Cada um deles estudou e amou seus predecessores, e procurou , através dos exemplos, ir mais longe: não mais longe que os outros, mas mais longe que eles mesmos.”
Professor por natureza, em 1970 Béjart fundou a escola Mudra em Bruxelas e, sete anos mais tarde em Dacar. Em 1992 nascia em Lausanne a escola Rudra. Visando a “redescobrir a essência da interpretação” a companhia foi estabelecida em cerca de trinta bailarinos.Atualmente metade dos bailarinos do “Béjart Ballet Lausanne” vem do Rudra.
Deixou-nos um portfólio majestoso, em qualidade e em quantidade, de realizações coreográficas abordando temáticas as mais diversas, sempre muito nobres e revolucionárias, fossem elas históricas ou contemporâneas, muitas das quais se tornaram referências mundiais na Arte da Dança. Trabalhou até o seu último sorriso, em plena realização de uma super-produção intitulada A Volta ao Mundo em 80 minutos, criada como uma síntese cultural da dança da arte e em retrospecto à sua prórpia obra, realizada pela sua atual e derradeira companhia de Dança Béjart Ballet Lausanne, na Suíça.
Com a morte de Bejart, Gil Romain, então diretor adjunto, assumiu a direção da Companhia que estreou, em dezembro de 2007, na Suíça, A Volta ao Mundo em 80 minutos. Oxalá venham ao Brasil. Tive o privilégio de ver ao vivo vários espetáculos de Béjart, que muito me emocionaram, de ficar arrepiada. Desde a década de 70 acompanho sua obra, quando tinha de ir ao Rio para ver seus espetáculos e, depois, aqui mesmo, onde vi, em 1997, a performance de Gil Romain em Adagietto, de Malher (já a conhecia com Jorge Donn, e Gil Romain é tão deslumbrante como Donn). Sagração e Bolero, dançados pelo Ballet de Tóquio, no Palácio das Artes, em 1998, me deixaram marcas indeléveis. O público levantou-se em aplausos emocionados, verdadeiros, de coração aberto, e não como agora, quando se aplaude de pé qualquer bobagem.
Em 2003, ví Madre Tereza e as crianças do mundo,( nova companhia com intérpretes muito jovens) com a brasileira Márcia Haydée, uma presença forte e expressiva no alto de seus 63 anos – maravilhosa! – contracenando com o jovem carioca William Pedro, sobre o qual disse Béjart: “A perfomance de William Pedro é um verdadeiro triunfo. Esse jovem brasileiro negro, de olhos brilhantes, com um sorriso desarmante, é tão irresistível no Papageno de Mozart quanto em Cherubino, em dueto com a encantadora Luciana Croatto.”
Originalmente publicado no jornal O Cometa Itabirano
Foto: Ara Guler