– Eu queria conversar com você. Pode ser agora?
– Agora??????????? Não está vendo esta montanha de papel? São contas. CONTAS. E cadê grana pra pagar tudo isso? Esse mês não vai dar!
– Tô falando sério, mãe. A gente precisa conversar. E tem que ser agora.
– Quando são os seus assuntos… é urgência na certa! Não dá prá adiar, não é? E o que eu faço com as contas? O quê? Adio também?
– Mãe, me escuta, por favor.
(Pausa Dramática)
– Eu quero ser bailarino!
– (Acho que não ouvi direito) O que menino?????
– Quero ser bailarino!
– Como assim, bailarino?
– Bailarino, mãe! Dançar…
(Mãe também tem audição seletiva)
– Ah, dançar! Dança de salão, já sei. Aparece sempre na Dança dos famosos
– Não, mamãe, nada a ver. Eu quero ser BAI-LA-RI-NO!!!!!!!!!! Entendeu, agora????
– Bailarino???????
É, bailarino. Que dança ballet!
– Ballet??????? Não pode ser! Dança moderna. Contemporânea.… tá na moda! Não tem até aquele grupo que escala paredes?
– Nãaaaaaaao, mãe eu quero ser bailarino. Como o Biily Elliot do cinema.
– E você acha mesmo que eu sei quem é esse tal de Billy não sei das quantas? Seu amigo, por acaso?
–Billy Elliot, do cinema.
– E desde quando você tem amigo artista, menino! É demais pra mim, além de querer dançar, ainda tem amigo artista. Ninguém merece!
– Mãe, Billy Elliot é o nome de um filme. Sobre um rapaz que queria fazer ballet como eu.
– Ballet?????? Você quer fazer ballet????
– É mãe, ballet. Tô tentando te dizer isso há dez minutos. Mas você não ouve. Não quer ouvir. Quero fazer balllet clássico! De sapatilha e malha!
– Sapatilha???????? Você vai usar SAPATILHA??????????
(As mães sempre pensam que toda sapatilha é de ponta)
– Você quer que eu dance como? De tênis?
– Não venha me dizer agora que você vai se fantasiar de bailarino?
– Mãe, bailarino não usa fantasia, usa figurino ou, — no máximo – uniforme para fazer as aulas.
– E o que eu vou dizer para as minhas amigas? Para a família?
– A verdade, mãe. Simples!
_ Você enlouqueceu Carlos Henrique? Quem botou essa ideia na sua cabeça? Tanta coisa pra você escolher… lutas, vôlei, basquete!
– Mas quero ser bailarino. Clássico. Dançar O lago dos cisnes, Giselle, Dom Quixote! Ninguém me influenciou.… decidi sozinho
– Enlouqueceu mesmo. Ballet é só para meninas. Onde já se viu um homem deste tamanho fazendo aulas de ballet? Ridículo!!!!!!!
– Você já ouviu falar de Nureyev, Baryshnikov, Jorge Donn, Bejart, Marcelo Gomes? São bailarinos. Os maiores do mundo. O Marcelo, inclusive, primeiro bailarino do American Ballet Theatre, é brasileiro.
– Nem primeiro, nem segundo. Você quer me matar de desgosto? Um filho bailarino era só o que faltava. O que os outros vão dizer?
– Não sei e nem estou interessado. Não devo satisfações a ninguém! Quero fazer o que gosto, o que me dá prazer. O resto que se dane.
– O resto eu que aguente não é assim, Carlos Henrique? Sempre é! Bailarino clássico.… devo ter feito um jogo de pega varetas com lascas da Cruz para ser castigada deste jeito. Não conte comigo!!!!
– E nem quando eu for famoso você vai me assistir?
– Famoso? Você quer ser famoso? Além de dançar ballet você quer que todo mundo saiba? Meu filho pense bem, tem tantas outras coisas para você escolher. Uma luta marcial, por exemplo? Que tal! Tem mais a ver. E depois onde você vai aprender ballet menino?
– Numa academia, mãe.
– Academia!!!!!!!!!!!!!!!! Aquelas salas lotadas de.…… moças e você lá rodopiando que nem.… ah, que desgraça!!!!!!!!!! Não pode ser verdade! Cadê meu Rivotril? Melhor a morte; só a morte vai me livrar de toda essa tristeza, de tanta decepção.
– Mas eu prometo a você ser o melhor bailarino do mundo! Prometo.
– Pode prometer o que quiser! Não adianta. Nem famoso, nem anônimo… não quero nem saber. NÃO QUERO TER UM FILHO BAILARINO, ENTENDEU????Tudo bem, vai dançar, tá ótimo!!!!!!! E vai viver como? De dança???? De ballet??? Além de bailarino, POBRE???? Isso é um pesadelo!
– Mãe.….
– E o senhor fique sabendo que daqui não sai naaaaaada, absolutamente naaaaaada para pagar essas aulas, ouviu bem?
– Já esperava por isso.. vou pagar com minha mesada.
– Ah, é??????? Então nem pense em me pedir mais dinheiro quando não tiver mais um centavo.
– Não vou pedir.….. mas, mãe, fala sério, isso é preconceito, puro preconceito. Estamos em 2014, não na Idade Media. Vai me desculpar mas todo preconceito é burro!
– Agora também está me chamando de burra, é isso mesmo?
– Não, mãe, não estou dizendo que você é burra.…. queria só entender as razões para tanta raiva de rapazes que dançam ballet?
– Não é raiva, Carlos Henrique, não tenho raiva de ninguém. Só que não quero ter um filho bailarino. Presta bem atenção, rapazes que dançam são todos meio “esquisitos”. Você há de concordar comigo… não é possível!!
– Esquisitos??? Como??? Gays??? Não, mãe, são artistas, pessoas sensíveis que escolheram a dança porque gostam, porque se realizam através dela. Da mesma forma que o nosso vizinho escolheu, medicina. É que esta droga de preconceito vem de tanto, mas de tanto tempo, que grudou na cabeça das pessoas, para não sair nunca mais. Parece um vírus que se vai se espalhando e corrompendo o bom senso dos outros!
.….….…
Se você ainda não ouviu este diálogo ou participou dele, com certeza conhece ou sabe de alguém que protagonizou – ainda que indiretamente –essa cena. Até porque o preconceito existe e não tem nada que possa disfarçá-lo. Do preconceito vem o sofrimento, a crueldade, os comentários ferinos, o bulling. Pessoas preconceituosas são amargas, infelizes, limitadas. Em contrapartida sempre encontramos também (VIVA!!!!!) quem compreenda, aceite e torça para que as academias – assim como em várias partes do mundo – fiquem repletas de meninos nas turmas iniciantes, intermediárias, preparatórias, adiantadas e que todos eles possam ter carreiras muito bem sucedidas. O ballet é uma profissão como todas as outras e não tem absolutamente nada a ver com opção sexual vista pela sociedade como “politicamente incorreta”.
Danilo Camassuti tem 24 anos, dança desde os 19, e sempre recebeu o apoio dos pais. “Sou o artista da família. Todos me tratam com muito respeito. São os primeiros a querer saber sobre minha carreira. Infelizmente o Brasil ainda é um país preconceituoso, repleto de pessoas com coração gelado e vazio. Graças a Deus recebi e recebo do apoio da minha família e dos amigos que me enchem de carinho ate hoje.”
“A dança me pegou desde cedo”, continua. “Por trás do vidro eu via saltos, giros, pés esticados. Um novo universo se abriu quando tomei coragem e abri aquela porta. Entrei sem sapatilha, descalço, braços tortos, olhar assustado. Ali, entretanto, era o meu lugar. Quando a dança entra na sua vida ela passa a ser a sua respiração. Você precisa dela para voar, é como eletricidade. Sem ela você não acende.”
Carismático e muito talentoso, Danilo e sua história estão bem mais próximos do final feliz de Billy Elliot, do que do drama familiar vivido por Carlos Henrique. Que possamos ter mais finais felizes como o dele e sempre menos preconceituosos do que todos os outros.
Portanto, se seu filho quiser mesmo ser bailarino, se esta for realmente a vocação dele, se ele tiver talento e força para enfrentar a “batalha” de longas horas de estudo e ensaios que o futuro lhe reserva, e se – acima de tudo – nada for mais importante do que dançar para deixá-lo feliz, ajude, incentive, deixe que o destino se cumpra.
A arte – sensibilizada – agradece.