“Napoli”, ou “O Pescador e sua Noiva”
“Um clássico só vive se se pode relacionar com ele.” — escreveu Erik Aschengreen — critico de dança e Doutor em Filosofia — em um artigo publicado na internet sobre o ballet Napoli.
“Napoli se tornou o ballet preferido dos dinamarqueses. Poderia ter feito algo melhor, mas
certamente nada de maior sucesso”. — comentou Bournonville.
Napoli nunca saiu de cena no Teatro Imperial da Dinamarca desde a sua estreia, em 29 de Março
de 1842. São quase 172 anos de história, sendo passado de “perna em perna” — como disse
Natalia Zvenigorodskaya.
August Bournonville nasceu em Copenhague em 21 de Agosto de 1805, mesmo local de sua
morte, em 30 de Novembro de 1879. Era filho do bailarino e coreógrafo francês Antoine
Bournonville, que estudou desde os 9 anos de idade com Jean Georges Noverre.
August Bournonville foi um coreógrafo e professor formidável. Algumas combinações de
movimentos criadas por ele são executadas até hoje em salas de ballet de todo o mundo.
Nas palavras de Svetlana Naborshikova (Jornal Izvestia, 2009), Bournonville era um: “Realista
convencido e moralista incorrigível”. Não o agradava a dança por si só, por mais perfeita e
virtuosa que ela fosse, “por isso ele coreografava seus ballets como se esses fossem peças e
novelas, só que sem palavras. Napoli é um típico romance de formação (Bildungsroman)
construído de forma clássica: casa — viagem — casa.”
Bournonville teve a inspiração para o ballet durante a sua primeira viagem à Italia, em 1841. Ele
ficou hospedado no Largo di Santa Lucia. Sobre essa visita, Bournonville escreveu em suas
memórias: “Da minha janela, no curso de uma hora, eu testemunharia mais tableaux que eu
poderia usar em dez ballets”. O enredo do ballet foi escrito por Bournonville na sua viagem de
volta à Dinamarca, entre Paris e Dunkirk, como podemos encontrar no livro de Roberto Pereira:
“Formação do Balé no Brasil”.
E de fato. O primeiro ato é composto basicamente de pantomima. Crianças, comerciantes,
mulheres, mendigos, pescadores, “cidadãos respeitáveis”, monges… todos passeiam para cima e para baixo, relacionando entre si através de pantomima. A dança surge inesperadamente e de forma rápida, tudo para não quebrar a atmosfera Napolitana da cena.
No segundo ato, a Gruta Azul, Bournonville criou (ou fez uso de) um “truque de mágica” para a
transformação da heroína em Náiade. O seu vestido italiano, em um piscar de olhos, desaparece,
e ela está vestida de Náiade. O mesmo acontece, só que ao contrário, quando Teresina retoma a
sua forma humana. A roupa de Náiade desaparece em um piscar de olhos e a jovem aparece
vestida de moça italiana novamente. Isso acontece no palco, na frente de todos, e encanta e
surpreende todos os públicos desde o século XIX.
A obra-prima coreográfica do ballet foi deixada para o terceiro ato, durante a festa de casamento
dos heróis, onde ocorre uma sucessão de danças. Não é um Divertissement clássico como os dos
ballets russos. Não existem danças separadas, pas de deux central dos protagonistas e também
não tem uma estrutura hierárquica rígida. As variações dos personagens principais é bem menos
marcante do que as do Pas de Six. E na famosa tarantela, os personagens principais participam
tanto quanto todos os outros.
A emoção da estreia foi tão grande, que é retratado historicamente que uma testemunha
escreveu: “(o público*) por falta de castanholas, acompanhou a tarantela incessantemente, com
palmas e assobios, e havia uma alegria por toda a casa que poderia acordar os mortos “.
Por se tratar de uma efervescência coreográfica, sem dependência direta com o enredo, é comum
esse ato ser remontado separadamente. No Brasil, por exemplo, nunca foi dançado o ballet
completo, mas apenas o terceiro ato.
Enredo:
Personagens:
Teresina, uma jovem italiana apaixonada por Gennaro.
Gennaro, jovem pescador italiano apaixonado por Teresina.
Veronica, mãe de Teresina.
Peppo, bem sucedido vendedor de limonadas, apaixonado por Teresina.
Giacomo, rico vendedor de macarrão, apaixonado por Teresina.
Fra Ambrosio, um monge.
Golfo, demônio do mar que governa a Gruta Azul.
Ato I
O cais de Santa Lucia em Nápoles está repleto de pessoas. É noite e uma multidão variada
floresce enquanto os habitantes locais se misturam a turistas e artistas.
A viúva Veronica entra com a sua bela filha Teresina, que é cortejad a pelo negociante de macarrão, Giacomo, e o vendedor de limonadas, Peppo. Os dois expressam a vontade de casar com ela. Porém Teresina não está interessada em nenhum deles e aguarda ansiosa pelo retorno do seu amado, o jovem pescador Gennaro, que ainda estava no mar.
Teresina dança com amigas a espera de Gennaro. Peppo e Giacomo tentam, cada um, convencer Veronica a entregar Teresina em casamento. Veronica tira sua filha da dança dizendo que ela deve escolher entre os dois comerciantes para se casar. Teresina os trata de forma rude.
Gennaro aparece e pergunta sobre a sua amada. Ela corre para os braços dele. Veronica a tira de perto dele, diz que não entregará a sua filha a ele. Os dois insistem no amor e Veronica acaba cedendo.
Começa uma briga pela partilha da pesca. Veronica indaga sobre a pesca. Todos se viram para o
mar e agradecem.
Aparece Fra Ambrosio. Giacomo lhe nega uma doação. Teresina faz a sua e pede para o monge abençoa-la junto com a sua mãe e amado.
Teresina sente ciúmes e discute com Gennaro. Ele a pede em casamento, ela aceita e vai para casa.
Peppo espalha para todos sobre o casamento de Teresina e Gennaro. Teresina retorna trazendo um violão. Peppo diz que irá acabar com o casamento dos jovens, mas é muito covarde para isso e acaba saindo carregado pelos pescadores amigos de Gennaro.
Dança Balabille. Dançam casais e os heróis. Gennaro convida Teresina para sair velejando ao luar. Eles partem. As pessoas restantes são entretidas pelo cantor de rua Pascarillo, cujo canto, na realidade, é realizado por um trompete. Um marionetista toma o lugar de Pascarillo.
Começa uma grande tempestade que os locais já pressentem, por causa da mudança de
umidade. O horizonte escurece.
Após a tempestade, Gennaro é resgatado inconsciente. Todos pensam que Teresina se afogou e Veronica acusa o jovem pescador pela morte de sua filha. Gennaro fica só. Desesperado em sofrimento, ele pensa até em se matar. Ele grita aos quatro cantos.
Aparece Fra Ambrosio e o conforta. O monge entrega a ele uma âncora e a imagem da Virgem. Fra Ambrosio envia Gennaro de volta ao mar para buscar Teresina.
Ato II
Gruta Azul.
Duas náiades trazem a desfalecida Teresina e seu violão para a gruta. Chegam as outras
Náiades, entra Golfo, um espírito/demônio do mar que reina na Gruta Azul. Quando ele vê
Teresina, fica fascinado com a sua beleza. Ele exclama: — “Que bela!”.
Teresina se assusta ao acordar na Gruta Azul. Ela faz o sinal da Cruz ao ver Golfo. Pede para ir, mas ele prontamente diz que “não”, e a manda se ajoelhar. Ele a transforma em uma Náiade.
Variação de Teresina como Náiade.
Golfo entrega uma corneta para Teresina, pedindo que toque. Ela o faz e assim começa a dança das Náiades.
Adagio Pas de Deux de Golfo e Teresina. Golfo oferece à Teresina se tornar rainha da Gruta Azul.
Entram os Náiades e avisam que um barco se aproxima. Golfo manda todos saírem.
Gennaro veleja até a gruta. Ele encontra o violão de Teresina. Entram as Náiades e ele indaga sobre o violão. Ele vê Teresina, mas ela não mais reconhece o seu pescador. Nem mesmo a melodia favorita do casal é capaz de despertar as memórias dela.
Então Gennaro se ajoelha em um canto, de costas para Teresina, e reza, erguendo a imagem que Fra Ambrosio lhe deu. Teresina se aproxima por trás e vê a imagem, então se recorda. Se afasta e quando Gennaro percebe, ela já está a jogar a pulseira e coroa Náiades no chão. Os noivos correm em encontro um do outro. Gennaro entrega à sua noiva a imagem da Virgem. Os dois agradecem a Deus o ocorrido, e é nesse instante que Teresina volta à sua forma humana.
Golfo apenas observa a felicidade dos noivos. Os noivos decidem partir. O Demônio do Mar os impede e ordena que os Náiades carreguem Gennaro. Teresina entra no meio e mostra e imagem da Virgem para Golfo, que se afasta amedrontado. Todos se curvam diante da imagem.
Golfo deixa que eles partam levando uma fortuna oriunda dos mares. Teresina tenta agradecer, ele recusa e ordena que vão.
Ato III
O terceiro ato acontece no santuário do Monte Virgem, perto de Nápoles. Peregrinos se reúnem ao redor da imagem de Nossa Senhora.
Peppo e Giacomo espalham que Gennaro tem pacto com o diabo, já que trouxe uma morta de volta para a vida. Todos evitam Gennaro. Veronica leva a sua filha embora. Todos saem. Ficam o jovem pescador e os dois comerciantes. Gennaro afronta Peppo e Giacomo, que fogem.
Teresina retorna. Chega Veronica com algumas amigas de Teresina e o monge Fra Ambrosio. Ao ver o Monge, Gennaro se ajoelha e Teresina corre para lhe devolver a imagem. Nesse momento todos reaparecem e o monge explica o que de fato aconteceu. Todos se convencem e a festa começa. Uma série efervescente de danças: Pas de Six, solos, duetos e trios, a tarantela e o final.
Sobre a Partitura:
A música do ballet Napoli foi criada por cinco compositores. Os répétiteurs Edvard Helsted e Holger Simon Paulli compuseram os atos I e III. A cena da calúnia de Peppo tem como base de fundo a ária da calunia, da ópera de Rossini: “O Barbeiro de Sevilla”. A música folclórica: “Te voglio ben assai” pode ser escutada no ato I como tema de amor do casal.
A atmosfera subterrânea do segundo ato foi criação do jovem Niels W. Gade, que usou uma
famosa melodia da época: La Melancholie, do violinista virtuoso François Henri Prume. O hino em latim: “O Santíssima”, é usado para ilustrar o poder do Cristianismo sobre Golfo.
A pedido de Bournonville, H.C. Lumbye compôs o Galope que vem logo após a tarantela de Paulli e que encerra o ballet.
Fatos Curiosos:
Napoli tem solos masculinos estonteantes. Muitos consideram os maravilhosos e complexos solos masculinos como uma das assinaturas de Bournonville.
Descobrir a Tarantela Napolitana foi uma das maiores inspirações para criar o ballet. Bournonville contou em seu diário como, durante uma viagem monótona de carruagem,
ele passou horas sussurrando o que seria as primeiras três partes da tarantela.
Como é feito o truque da transformação de Teresina? – Todos que tiveram a oportunidade de se surpreender com essa cena, ao menos uma vez se fez essa pergunta: Como? — Bom, para responder à essa pergunta, conto com a consultoria de Fátima Cerqueira, bailarina mineira, professora da Royal Danish School, na cidade de Odense: “A troca de roupa é um alçapão. Uma abertura pequena no chão, com um técnico no sub-solo. O costume é desenhado especialmente, cheio de cordas, a bailarina solta um nó na hora certa e se coloca perto do alçapão, o técnico puxa, e tudo sai de uma vez. O outro está por baixo, quer dizer, ela está vestida com os dois.”
Vídeos:
Tarantela, vídeo de 1903:
História de vida Bournonville:
Parte 1:
Parte 2:
Vídeo completo, Royal Danish Ballet, 1986, clicando aqui.
Fotografias:
1) Caroline Cavallo e Jean Luc Massot. Foto: Martin Mydtskov Rønne.
2) Reprodução
3)Royal Ballet, 2007
4)Caroline Cavallo e Johan Kobborg, 1998. Foto: Martin Mydtskov Rønne.
5)Diana Cuni e Morten Eggert, RDB, 2006.
6)Olga Sizikh e Dmitry Romenko. Stanislavsky e Nemirovich-Danchenko, São Petersburgo, 2009.
7)Produção conjunta dos Teatros Stanislavsky e Nemirovich-Danchenko, São Petersburgo, 2009.
8)Lauren Cuthbertson e Johannes Stepanek.
9)Artistas do Royal Danish Ballet. Foto: Martin Mydtskov Rønne/ RDB.
10)Fernando Montano in Napoli. Copyright: John Ross© Royal Ballet, 2007