Da supremacia da bailarina ao GRAND PAS DE DEUX.
O processo que levou o ballet do Período Romântico a adquirir as novas características que fariam dele o “Ballet Clássico” foi condicionado por várias circunstâncias entre elas:
– O desenvolvimento de novos tecidos;
– A implantação de figurinos mais leves e, posteriormente mais curtos (tutu clássico), que permitiram uma gama maior de movimentos;
Uma réplica de um tutu romântico, como o que teria sido usado por Taglioni.
– A consolidação e o enriquecimento da técnica de ponta;
Réplica dos sapatos de ponta nos primórdios de seu desenvolvimento.
– E, especialmente, as alterações na sociedade e o ingresso de um novo público que passaria a “consumir” os espetáculos de ballet.
Embora tenha nos deixado jóias como “La Sylphide” e “Gisele”, o Ballet no séc. XIX (Ballet Romântico) experimentou, a exemplo de todos os períodos em todas as formas de arte, um esgotamento de seus temas e uma saturação em alguns aspectos de sua linguagem, ou melhor da “fórmula Romântica”, que se cristalizou e não conseguiu acompanhar o gosto desta sociedade recém-emergente deixando, aos poucos, de despertar neste público que surgia, o interesse por seus temas e espetáculos.
A sociedade da época estava em transformação, com crescente avanço da chamada “burguesia”, classe que passava a controlar também bens e riquezas e a consumir arte, fazendo-o porém, de acordo com seus padrões e gostos, os quais eram bem diferentes dos da monarquia (que crescia exposta à manifestações artísticas elaboradas, mais profundas e complexas, baseadas em mitos e em textos com conteúdo moral).
A arte conceitual, fiel à representação de um tema, com o objetivo de difundir valores e provocar uma reflexão, estava com os dias contados.
Por esta razão, a fim de sobreviver como manifestação artística, o ballet precisou ajustar-se a esta nova demanda do mercado, deixando-se diluir, no que dizia respeito aos temas complexos e reflexivos e fortalecer-se, no que dizia respeito à técnica, que deveria ser cada vez mais acrobática, chamando a atenção para manobras como saltos, giros e portés (carregamentos) desafiadores.
Fazia-se necessária uma nova etapa no desenvolvimento da linguagem e da técnica do ballet, a qual deveria torná-lo mais “espetacular”.
Os ballets de agora deveriam primar por aspectos mais “populares”, como o charme, o brilhantismo (técnico), a elegância e a personalidade mesmo que, ao atender estas exigências, a ação, a coerência dramática, e a representação fiel do libreto (história) se perdessem. Resumindo:“O público queria ballets mais fáceis.”
A Supremacia da Bailarina:
A “Supremacia da Bailarina” recém-conquistada, permaneceria mais forte do que nunca!
Estabelecido durante o período Romântico, o endeusamento da bailarina estava ligado ao papel que esta desempenhava nos ballets da época, onde incorporava seres fantásticos, imateriais e inatingíveis, cuja conquista era fascinante e desafiadora.
Estes atributos acabavam sendo “transferidos” para as bailarinas, que no entender do público, passavam a representá-los também fora dos palcos.
Elas foram transformadas em estrelas. Seus modos de vestir e de pentear lançavam moda e eram copiados. Marie Taglioni, por exemplo, foi considerada um “modelo” dentro e fora dos palcos, influenciando toda uma geração.
Marie Taglioni, bailarina para a qual foi criado o papel da Sílfide, em “La Sylphide“.
A bailarina reinava dentro e fora dos palcos. Ao bailarino cabia o segundo plano distante, cumprindo apenas o papel de apoio, de “elevador” e de “acompanhante”.
Esta depreciação do bailarino, que acarreta uma defasagem no desenvolvimento da técnica de dança masculina, somente será questionada e, de certa forma, corrigida (compensada) no Ballet Raymonda criado em 1898 por Marius Petipa, que incluiu, pela 1ª vez, uma variação para quatro primeiros bailarinos (LIFAR, 1954, p.156).
Sobre este aspecto do favorecimento da bailarina, com total detrimento do bailarino, Serge Lifar comenta em seu History of Russian Ballet:
“Sob estas circunstâncias, a dança masculina e o drama coreográfico eram vistos como cansativos e enfadonhos. Ao coreógrafo era requerido que atendesse a um único requisito: Contemplar o gosto da bailarina.
Os ballets tinham que ser feitos sob medida e à “estrela” era assegurado o direito de pedir que trechos da coreografia que não a favorecessem fossem suprimidos ou substituídos por outros “emprestados” de ballets dançados anteriormente.”
Sobre os partners, continua Lifar no mesmo trecho, “os Bailarinos eram tolerados contanto que atendessem à necessidade da bailarina no papel de apoio e guia. Eram meros carregadores e deveriam apenas deslocar as bailarinas sem demonstrar esforço, contribuindo para enfatizar sua graça etérea. Nem mesmo em suas variações os bailarinos podiam demonstrar habilidades técnicas particulares.” (LIFAR.1954, p. 102)
Considerando este cenário, não surpreende o fato de Petipa ter recebido, ao tomar posse como coreógrafo chefe a recomendação de fazer “tudo o que fosse necessário para agradar à bailarina”.
Outra “recomendação” foi para tornar os ballets mais acrobáticos, concentrando esforços nas demonstrações da técnica, com saltos, equilíbrios nas pontas e giros desafiadores.
Coube a ele encontrar a “fórmula” para um “novo ballet” que voltaria a agradar ao público.O “pulo do gato” recebeu o nome de “divertissements”– pequenas coreografias nas quais a prioridade era a exibição técnica, sem (ou com muito pouca) relevância para a representação da narrativa.
O diferencial de Petipa:
Petipa conhecia profundamente os bailarinos para quem criava e, para eles, coreografava solos (variações) e duetos (pas de deux) que demonstravam, com exatidão, as qualidades particulares de cada um.
Don Quixote foi coreografado originalmente por Petipa. “A Bela Adormecida”, “Don Quixote” e “O Quebra Nozes” são exemplos de ballets nos quais, por meio destes divertissements, um grande número de bailarinos tem oportunidade de demonstrar suas habilidades técnicas e artísticas, em solos repletos de virtuoses e desafios.
Esta etapa da evolução da linguagem da dança foi consequência: do surgimento de novos passos e arranjos; do amadurecimento do trabalho nas pontas e da alteração dos figurinos, que agora tinham com saias mais curtinhas (os tutus clássicos).
Este conjunto de avanços revitalizou o ballet e ajudou-o a conquistar a plateia emergente. É importante que se diga, porém, que estes novos aparatos técnicos pouco contribuíram para a arte da dança como um todo, tendo deixado de lado a relação entre o conteúdo exibido pela técnica e a encenação precisa do drama.
O estilo de Petipa acabou por caracterizar-se da seguinte forma: Um conjunto de divertissements, cada vez mais ricos e apurados tecnicamente, que dispensavam, quase completamente, a mímica para expressar o enredo.
Em vários ballets de Petipa, estes enredos constituíram apenas uma “linha mestra” em torno da qual as danças foram alinhavadas. Não havendo preocupação com o aprofundamento do tema por meio do ballet.
Esta característica, no entanto, não foi vista, pelo público da época, como uma falha e não afetou nem o sucesso, nem a grande aceitação por parte do público, dos ballets deste grande mestre.
O tutu “clássico” com a saia curtinha permitiu à bailarina a realização de uma gama muito maios de movimentos, tanto em solos, quanto nos Pas de Deux.
A apresentação da bailarina para o Pas de Deux final dos ballets vestindo um tutu clássico também era uma constante na “FÓRMULA DE PETIPA”.(FARO, 1986)
Esta fórmula de Petipa, centrada prioritariamente na dança, fez com que o ballet se desenvolvesse numa escala sem precedentes, no que diz respeito à criação de novos passos e ao aumento da virtuosidade técnica.
Com relação ao desenvolvimento da técnica na era de Petipa, Antônio José Faro comenta, em “Pequena História da Dança” (p. 75):
“… E foi exatamente através do conhecimento técnico que ele nos legou obras que até hoje são o grande privilégio das grandes estrelas da dança.
Isto não quer dizer que ele tenha transformado a dança em acrobacia (…) mas é possível que soubesse que existem na dança, movimentos pertencentes, de certo modo, ao reino da acrobacia e que, como todas as artes roubam uma das outras, não haveria mal algum em incorporar à técnica do ballet efeitos que até então poderiam ser classificados como circenses.
O equilíbrio da bailarina nas pontas dos pés ou a execução dos 32 fouettés são alguns exemplos de coisas que hoje consideramos absolutamente normais num palco, mas que, na época, foram classificadas como TRUQUES DE CIRCO!”
O pequeno vídeo abaixo trata da criação dos 32 fouettes, por “Pierina Legnani”, uma manobra técnica que passou a ser praticamente obrigatória nas “codas” dos “Grand pas de deux”.
Nesta nova forma de “contar as histórias”, na qual as “falas eram dançadas” e equivalentes: às falas individuais, nas variações; aos diálogos, nos pas de deux e aos acontecimentos pertinentes a todos, nas danças de grupo, a arte do Pas de Deux também foi elevada a novos patamares e ganhou a tão célebre forma:
Entrada+ adagio + variação masculina + variação feminina + coda = GRAND PAS DE DEUX
Os passos recém-criados, combinados de forma genial, em suas criações coreográficas, aumentaram enormemente o impacto emocional de seus ballets perante os espectadores, despertando reações de entusiasmo e admiração e ajudando a manter viva e fascinante, uma modalidade que até pouco tempo (no fim do romantismo) parecia não ter mais nada a oferecer.
Como acontece com toda fórmula que se cristaliza, a de Petipa perdeu, aos poucos, o seu encanto e, não conseguindo se reinventar ou se atualizar, caiu em declínio, a exemplo do que já tinha acontecido com a fórmula anterior (a do Romantismo).
Este declínio criou condições para o surgimento de uma nova etapa no desenvolvimento da arte da dança. Um dos grandes responsáveis por este novo capítulo será MICHEL FOKINE, um grande reformador da dança, que fez parte da Companhia de Diaghilev.
Mas este será assunto para outro post, combinado? Aguarde!