“Não posso, tenho ensaio.”
A moça com uma mochila “estourando” de tão cheia pendurada nas costas, que entra apressada (e caminha de forma de forma inconfundível) pela entrada lateral do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, certamente já repetiu esta frase um milhão de vezes desde que — aos 11 anos — decidiu ser bailarina profissional. Mas ela jura que não se arrepende e que faria tudo de novo. Coisas de gente que – mesmo não sabendo desde cedo — nasceu para dançar.
Atualmente Renata Tubarão tem 33 (jeito de 25 e assim mesmo com muita má vontade), é linda como uma princesa, tem um sorriso iluminado, um carisma inegável e talento, muito talento. Tanto que logo assumiu o posto de primeira solista do corpo de baile do teatro. Mas enganam-se os que pensam que estamos diante de um caso de amor antigo. “Fui me apaixonando com o tempo. Meu encontro com o ballet aconteceu de repente, nunca foi um sonho de criança. Na verdade eu queria ser pediatra, mas a vida acabou me levando nessa direção e foi muito bom”.
Renatinha começou a fazer aulas de ballet — segundo suas próprias palavras — “muito tarde”, na Escola de Dança Alice Arja. “Mas eu dançava jazz desde os 7 anos e lembro que adorava. Para falar a verdade, sempre gostei. E acho que isso tem muito a ver com o fato de adorar música. Posso começar o dia cheia de dor, mas se o pianista estiver inspirado, tudo passa. O efeito da música em mim é absolutamente arrebatador”.
E assim chegamos aos pliès, relevés, cambrés, grand-jetés, sisonnes e muitos outros passos. São tantos que nem dá para fazer uma lista. Mas dá pra contar que quando a melhor amiga foi renovar a matrícula numa academia de ballet, da conversa entre as mães das duas moças nasceu uma grande ideia. E num piscar de olhos, Renata já estava matriculada também. “Dai em diante foi tudo muito rápido, aulas de ponta, festivais, concursos, exames para o Royal Academy, até me profissionalizar pelo Ballet Dalal Achcar, ir para o Teatro Municipal e para o Zurich Ballet, onde trabalhei por um ano. Enfim, nunca mais parei. Por isso digo que o amor pela dança veio aos poucos, não desejei, não fui lá buscar. Mesmo assim foi tudo tão intenso como se eu tivesse desejado muito”.
Fez prova para o Royal Academy, onde uma professora do próprio Royal Ballet (Londres) avaliava as candidatas e depois distribuía certificados com a graduação alcançada. “Não lembro bem por quantas provas passei, mas em duas delas recebi o Honors e o Higly Commended, o que é muito gratificante. No mais foi meu período de profissionalização mesmo, na Alice Arja e na Dalal”.
Renata confessa que sempre gostou da rotina pra lá de rígida, da vida de ensaios, de dedicação integral, de participar de concursos. Depois de formada começou a trabalhar e a receber pelo próprio trabalho. “Mas só no musical Branca de Neve, de Dalal Achcar. Quando a temporada acabou não tinha mais nada em vista. Na minha cabeça era um absurdo ter 18 anos e ainda precisar pedir dinheiro a meu pai para fazer aulas de ballet. Eu achava que já deveria estar trabalhando e sendo remunerada por isso. Ganhando meu próprio salário. Afinal estava formada! E não queria dar aulas, queria dançar! Foi quando – contrariando tudo — comecei um cursinho pré-vestibular.”
O destino, entretanto, tratou de dar um “sacode” nestes planos e resolveu encaminhá-la de novo para o ballet (bendita decisão) e mesmo diante de todas as adversidades nunca desanimou. A transição para a vida profissional não foi lá muito simples. “Naquela época não tive muitas opções. Eu não queria outro tipo de dança, nem dar aula em academia, queria dançar, então me senti limitada. Em junho de 1999, fiz uma audição – junto com muitos outros candidatos — para trabalhar como contratada nas temporadas do Corpo de Baile. A primeira vez em que as sapatilhas de ponta de Renata pisaram no palco sagrado do Municipal foi para dançar uma das camponesas em Coppélia. (voltou recentemente no mesmo ballet, só que desta vez como protagonista.) Em 2002, passou por outra audição, desta vez para ser efetivada. “E ainda sem foco deixei mais uma vez que a vida me levasse”.
E como vida de bailarina pode até ser glamurosa, mas de simples não tem nada, em 2013, Renata precisou se afastar para passar por um procedimento cirúrgico que corrigiria a lesão no acetábulo (estrutura óssea existente no quadril que se articula com a cabeça do fêmur) sofrida há alguns anos e que acabou por retirá-la de circulação. O momento foi muito difícil e delicado “porque me vi obrigada a lidar com a ideia de finitude. Isso é um choque para alguém que só sabe fazer aquilo e que se dedicou integralmente durante uma vida inteira para conseguir fazer bem feito. É um paradoxo… o que te faz melhor como bailarina, também é o que pode te levar ao final da linha. Um bailarino nunca pensa no fim, pelo menos não na minha idade. A lesão me colocou diante desse confronto. Outro aspecto ruim foi o medo de não conseguir voltar a ser o que eu era, de não dançar como antes. Mas como sempre busco o que existe de positivo numa adversidade, acabei encontrando.”
Em outubro de 2013, finalmente, ela voltou ao Municipal como a Ninfa em L’après midi d’un faune, na remontagem de Tatiana Leskova, para a coreografia de Vaslav Nijinsky com música de Claude Debussy. Um super-sucesso. A partir daí, recomeçava também a rotina de aulas e ensaios intermináveis. “Fora de temporada trabalho de segunda à sexta, das 10 às 16h. Tenho aula de 10 às 11h15 todos os dias, e a partir das 11h45 começam os ensaios que só terminam às 16h. De noite faço faculdade, tenho uma Shih tzu que é como um filho e me dá um mega trabalho para comer, faço sessões de fisioterapia, academia, uma correria só. Quando estou dançando mesmo, minha vida se volta inteiramente para o ballet, dou um tempo com tudo e foco nos espetáculos, principalmente depois da lesão”.
Segundo ela não existe prova para um bailarino ascender na carreira dentro do Teatro. A nomeação é subjetiva, se não for meramente relacional. “Acredito que em determinada época tenha sido por mérito, ou até mesmo pelo tempo em que o bailarino desempenhara na função acima da que ele ocupava naquele momento. Falando da minha experiência, entretanto, ao longo desses nove anos, vi que os papéis representados ou a qualidade técnica e artística empregadas não são tão fundamentais assim. É preciso, não me pergunte como, transcender a esfera do trabalho. Eu entrei no Corpo de Baile em Junho de 1999, algum tempo depois comecei a ser escalada para solos e em 2005 fui escolhida para interpretar Aurora, em A Bela Adormecida, minha estreia em primeiros papéis. Na maioria das vezes as nomeações acompanham esse crescimento do bailarino. São formas de reconhecer o seu trabalho. No meu caso, o único reconhecimento que tive até hoje nesse sentido foi do meu público, e sinceramente, depois de ter vivido tudo que vivi para mim não há termômetro melhor.”
Uma artista consciente e conectada com o seu tempo, Renata Tubarão certamente dedica a maior parte do dia ao ballet. Mas em nenhum momento esquece que existe um mundo em volta, está sempre pronta a defender uma causa, indignar-se diante de uma injustiça e levantar a própria voz, quando se faz necessário A atividade que exerce, por exemplo, está sempre em pauta. E ela faz questão de afirmar que ainda estamos muito longe de ver um bailarino recebendo o reconhecimento merecido. “Nossa profissão engloba duas dimensões: a atlética e a artística. Mas é tudo tão belo no ballet que a parte atlética fica esquecida e com isso perdemos muito em direitos, por exemplo. O instrumento de trabalho do bailarino é o corpo que deve estar protegido, assegurado, assim como o do atleta. Ambos começam e terminam cedo. Muitos ficam pelo caminho por conta de lesões. O bailarino, entretanto, não tem nem um terço dos direitos que os atletas já conquistaram. A classe tem culpa nisso na medida em que se mantém distante de tais discussões, talvez porque o lado artista fale mais alto. A mentalidade política como um todo deveria mudar. Nosso país é muito carente de valores sólidos, e a arte tem um papel extremamente relevante na transformação da sociedade. A arte é o alimento da alma, ela mexe com as pessoas, nos faz refletir criticamente. É preciso que haja mais investimento, políticas sérias, e que abranja todos os níveis sociais, crianças e jovens. É preciso dar a arte o valor que ela merece e valorizar ainda mais os seus artistas.”
Depois de L’après midi d’un faune, veio La Balaydère e uma Nikia esplendorosa e linda que voava com delicadeza e técnica apurada pelo palco do Municipal. E a menina (sim, ela parece uma menina) que sonha em dançar Gisele e Les Shylphides, tem Mikhail Baryshnikov, Aurélie Dupont, Polina Semionova e Diana Vishneva como ídolos, acredita que a princípio, a idade ideal para começar seja por volta dos sete anos. Mas isso também depende porque ela começou tarde e mesmo assim conseguiu construir uma carreira profissional. “Entendo que seja uma atividade que demanda muito da pessoa e, portanto, o quanto antes começar, melhor. Mas essa está longe de ser uma regra. Além disso, é essencial que se goste muito de ballet. Importante também é ter sempre a si mesmo como referência. Isso significa que se você tiver que competir, que o faça com você mesmo. Queira sempre ser melhor do que é, esqueça o outro. A verdadeira arte vem de dentro. Apesar de o ballet ser uma profissão ingrata, o que vivemos no decorrer da carreira é tão enriquecedor e intenso que podemos até nos dar ao luxo de não ficar preocupados por terminar tão cedo. Outra coisa super importante: estudar. É essencial ter uma segunda opção quando escolhemos o ballet como carreira. Sei que é difícil conciliar as duas coisas, mas uma dica bacana é fazer algo que também seja prazeroso.”
“Devemos ser a mudança que queremos ver no mundo”. A frase de Gandhi é aquela que está sempre no coração de Renata Tubarão. Uma pessoa rara, uma menina que é um verdadeiro presente para o ballet, para o público, para quem tem o privilégio de conhecê-la mais de perto; e que se define com uma sinceridade desconcertante. “Vivo nos extremos (sou capaz de sorrir chorando), adoro aprender com a minha vida, detesto metas, imposições, tudo que é muito padronizado me incomoda, aliás, até me faz ir na contramão do que é ditado. Prefiro ser livre… ter mais amores do que coisas, porque amo demais, sou sensível demais e não me entregaria de peito aberto a nada que não valesse a pena.”
Foto: Sheila Guimarães