A luz branca e brilhante proveniente do elipsoidal, que entrando suavemente batia e banhava nossas moleiras, ombros e pés, recortando o retângulo no chão do linóleo preto, limpo e fosco, era a deixa para mim do início do meu movimento.
Grau a grau, percorri com meu olhar o ângulo que faria repousar meus olhos no horizonte de uma plateia silenciosa e atenta.
A primeira das três notas, motivo do preludio da suíte número II para violoncelo solo de J. S. Bach, era a provocadora do impulso do meu primeiro com pé esquerdo dos três passos ao uníssono em direção à frente.
A base do meu corpo girou para a direita enquanto meus olhos permaneciam fixos no público, até que uma corrente ondulada partindo do meu pé esquerdo me percorria perna quadril tronco ombro nuca cabeça braço e mão e saia pelo meu dedo médio sinistro.
Num pivô meio “joão-bobo” sobre o pé direito todo o meu corpo se deslocou agora de costas e pernas abertas deixando rematar esse impulso num port-de-bras en dedans direito que acordava e chamava-a nos três acentos da minha contração que eram os seus três do seu olhar agora para frente.
A minha imagem sem rosto – rocha, árvore, biombo – era o cenário para a sua aparição miúda e curiosa de lado por trás e a frente também fitada na audiência mais atenta ainda.
Sem perder jamais a sugante boca negra da plateia nossas faces colavam-se, concheados numa contração.
Um novo acento nos tirava agora da confortante duplicação dos corpos e nos colocava frente a frente num corte vertical superior e inferior: como num reflexo ela emergia seu rosto das águas de um lago calmo como uma Ofélia e eu, como um Narciso, abria com minhas mãos as águas invisíveis num quase beijo nesse espelho mágico.
Então, como em tantos ensaios, ela me ofereceu seu gesto de olhos luminosos e seus lábios entreabertos prontos a dizer aquilo nunca dito, e como em tantos ensaios agora, sempre renovado e fresco.
Feliz, no encontro comprovei que assim como Ana Madalena tão fielmente transcrevera cada nota das suítes de Bach, esta Ana oferecia como um papel em branco seu corpo límpido às ideias propostas com a entrega e a verdade de uma criança.
Gracias!