Esse é o meu primeiro texto como colunista aqui do Blog da Loja Ana Botafogo.
Milhares de temas vieram à minha cabeça para essa primeira escrita. Mas pensei então na Ana Botafogo, e lembrei o quanto ela sempre foi uma inspiração para mim, desde os meus primeiros passos. Um exemplo de bailarina, mas acima de tudo um exemplo de artista. Sua disciplina, profissionalismo, entrega, humildade e carisma influenciaram a mim e a toda uma geração. E é desta forma que funciona: os grandes artistas inspiram os jovens aprendizes e assim a tradição da arte é mantida e alimentada.
Pronto…tema já escolhido para minha primeira produção aqui no Blog: Inspiração, Tradição, e Transmissão no Ballet Clássico.
Vamos lá!
O Ballet Clássico é por excelência a arte da tradição. Assim como os poemas épicos de Homero, foi sendo transmitido de pessoa a pessoa ao longo dos últimos quatro séculos. Bailarinos são obrigados a aprender e dominar os passos, variações coreográficas, rituais de cena e práticas pertinentes à carreira. Todos estes podem se alterar ou mudar com o tempo, entretanto, o processo de aprendizagem e transmissão continua profundamente conservador, como defende Jennifer Homans:
“Quando uma bailarina mais velha mostra um passo ou uma variação a uma jovem bailarina, a ética da profissão manda uma estrita obediência e respeito: ambas as partes acreditam que, com razão, uma forma de conhecimento superior está sendo passada entre elas […]. Os ensinamentos do mestre são reverenciados por sua beleza e lógica, mas também porque eles são a única ligação que o bailarino mais jovem tem com o passado […]. Essas relações, os laços entre mestre e aluno, que interligam os séculos e dão ao Ballet a sua base no passado. (HOMANS, 2010)”
Essa relação profunda e respeitosa entre mestre e aprendiz é o grande pilar da técnica clássica, que fez com que a mesma se sustentasse até os dias atuais. Além disso, esta técnica foi construída sobre inúmeras regras de etiqueta, baseada nas convenções da corte e nos códigos de civilidade, hierarquia e polidez.
Quando os bailarinos sabem uma coreografia, além da apreensão intelectual, eles a sabem com seus músculos e ossos. Portanto, as grandes obras do Ballet Clássico, como “O Lagos dos Cisnes”, “La Bayadère” e “Quebra-Nozes” do coreógrafo francês Marius Petipa, não são possíveis de serem totalmente gravadas em documentos históricos, mas sim incorporadas nos bailarinos que já as vivenciaram. Sobre isso, Duarte Jr. acrescenta: “o saber reside na carne, no organismo em sua totalidade, numa união de corpo e mente […] saber implica em saborear elementos do mundo e incorporá-los a nós (ou seja, trazê-los ao corpo, para que dele passem a fazer parte).”.
Corpo a Corpo. Experimentando “na pele”, quase como um patrimônio cultural imaterial, comportando valores das tradições e costumes herdados de diferentes grupos. Heranças, que muitas vezes não são tocadas, mas sentidas com o coração. Dessa forma que as grandes obras da história do Ballet Clássico, os chamados Ballets de repertório, foram sendo transmitidos ao longo dos anos.
Mas será que nada se perde nessas transmissões de geração a geração? Não ocorrem mudanças ao longo do tempo? É realmente possível remontar hoje uma obra criada, por exemplo, há mais de um século, mantendo integralmente a sua originalidade?
Essa reflexão sobre a originalidade de uma obra de repertório requer uma série de abordagens. Primeiramente, ao longo dos anos, a técnica do Ballet Clássico foi evoluindo. O avanço nos estudos da qualidade cinética dos movimentos e da anatomia foi agregando novas possibilidades técnicas e virtuosas aos executantes. O corpo dos bailarinos também mudou esteticamente. Conforme Denise Siqueira:
“Se a cultura recebe diferentes influências, se há um novo contexto, novas tecnologias e técnicas, o corpo que dança– e que está inserido nessa cultura– se tornou um corpo diferente também. O trabalho muscular, o treinamento, as próteses, o silicone, a alimentação, as cirurgias plásticas, os hábitos e costumes promovem modificações aparentes no corpo. O corpo de um dançarino ou bailarino do início do século XXI é diferente de outro dos anos de 1950 ou ainda diferente de um terceiro do século XIX. (SIQUEIRA, 2006)”
Também a percepção do público foi se alterando conforme o momento histórico e na época da criação desses grandes Ballets, em sua maioria no século XIX, não existia meios de registros eficientes para que hoje pudéssemos ter ideia do que realmente foram essas versões originais. O que sempre se tentou preservar foi além do enredo, a identidade da obra como um todo, a sua essência poética e o que ela representava para o momento histórico em que foi concebida.
obre as obras coreográficas mais recentes, a partir do século XX, algumas iniciativas foram tomadas para uma melhor preservação como, por exemplo, a criação do The George Balanchine Trust, organização responsável pelos direitos autorais das obras do grande coreógrafo russo radicado nos Estados Unidos, George Balanchine. Sobre isso, Jennifer Homans expõe:
“Neste espírito, tem havido um esforço impressionante para reviver ou documentar obras perdidas, especialmente as de George Balanchine. Suas obras mais conhecidas estão agora protegidas e controladas por uma organização de confiança estabelecida após a sua morte […]. Se uma companhia de dança deseja montar um de seus ballets, devem submeter-se à organização, que despacha repetiteurs — bailarinos que trabalharam com o coreógrafo diretamente — para remontar a obra coreográfica. (HOMANS, 2010)”
Outras organizações de mesmo estilo foram também criadas para cuidar dos direitos autorais e da preservação dos trabalhos de coreógrafos como Jerome Robbins, Antony Tudor e Frederick Ashton. Mas como defende Beatriz Cerbino, em seu artigo “Dança e Memória: usos que o presente faz do passado”, mesmo que exista uma única fonte ou organização para a remontagem dessas obras, é necessário perceber que ainda assim um grande número de variáveis está presente nesse processo, alterando maneiras de representação e percepção. Cada remontagem está relacionada ao espaço-tempo em que foram produzidas e, por isso mesmo, nem menos e nem mais originais.
A tradição vive ao longo da experiência dos seus usuários, recebendo nova vida e perspectivas frescas ao longo do tempo. Um espetáculo nunca é igual ao outro dentro de uma temporada de dois meses de uma companhia de dança, que dirá de um século para o outro. Isso é uma característica nata do Ballet Clássico. Suas obras de repertório vivem em um constante processo entre a efemeridade e a permanência. A cada apresentação efêmera, que acontece ali na cena e se evapora no ar, algo permanece. E é passado adiante. Algo intraduzível em palavras.
É esse “algo” que faz o Ballet Clássico permanecer clássico, mantendo vivas as obras de seu repertório. Esse algo que só é passível de transmissão através do corpo a corpo.
Como disse Martha Graham: “O corpo diz o que as palavras não podem dizer”.
Liana Vasconcelos e Ana Botafogo– Ballet La Bayadere– Temporada 2014– Theatro Municipal do Rio de Janeiro
E para finalizar, a minha eterna e tradicional reverência à Ana Botafogo, por ser esse nosso grande exemplo e inspiração de bailarina, dentro e fora de cena!