No centro do Marais, um dos bairros mais charmosos de Paris, fica uma das escolas mais tradicionais e cults da França. A construção é antiga. Algumas janelas estão quebradas e, nas paredes escuras, espalham-se cartazes de todos os tipos. Do pátio interno, já se percebe toda a agitação do segundo andar, com sua alegre mistura de sons e ritmos. Num ambiente com muitas portas e escadas, grupos de alunos circulam alegremente. Cansados em alguns casos, mas felizes. É mais ou menos neste clima alto astral que funciona o Centre de Danse du Marais.
Lá dentro, numa ampla sala com espelhos enormes, uma mulher de voz forte e porte altivo orienta a turma que se movimenta no compasso do tantã, instrumento de percussão que costuma esquentar e colorir o cinzento inverno parisiense. O que muita gente talvez não saiba é que a professora especialista em ritmos afro-brasileiros e uma das maiores autoridades no assunto, é brasileira, chama-se Eneida Castro e vive há mais de meio século na Europa.
“Cheguei à França em 1965 para trabalhar com o Grupo Folclórico de Mercedes Batista. Viajei depois com eles para a Polônia, Rússia e Bulgária, dançando e dando aula. Foi na Itália – onde ficamos cinco anos – que comecei meus cursos afro-brasileiros. As pessoas gostaram tanto que, quando voltei a Paris, achei que valeria a pena continuar. Nas minhas aulas procuro dar uma base clássica e moderna, com exercícios de barra e um aquecimento bem puxado. Só depois é que entro na nossa dança, no nosso ritmo. Os europeus estranharam um pouco no início, mas acabaram trabalhando bem porque têm uma qualidade essencial: a disciplina. É claro que não foi fácil chegar aqui e descobrir tudo, sem conhecer direito a língua, a terra, as pessoas. Mas sempre tive uma força de vontade enorme e em nenhum momento desanimei de lutar para vencer estar batalha.”, diz Eneida que já fala “escorregando” em nosso idioma e claro, com um forte sotaque francês pontuando sempre sua voz.
Ela trabalhou durante algum tempo na Itália como assistente do bailarino americano Bob Curtis, depois na Academia Daniel Frank, em Paris, até que surgiu a oportunidade de fazer parte da equipe do estúdio do Marais. “Comecei apenas como professora, mas meus alunos se desenvolveram tanto, que resolvi formar uma companhia, batizada inicialmente de Grupo Experimental Brasileiro Eneida Castro. Em 1982, entretanto, mudamos o nome para Orisha e já fizemos diversas apresentações por toda a Europa.”
Com tantos outros brasileiros que deixaram o país para fazer sucesso e obter reconhecimento pelo próprio trabalho no exterior, Eneida não consegue disfarçar uma pontinha de mágoa com o Brasil. E tão cedo não pretende voltar. “Acho que consigo dar muito mais de mim aqui. Além disso, na Europa a gente fica perto e pode aproveitar uma longa tradição cultural que ainda não existe por lá.”
A bailarina Eneida Castro descobriu sua vocação para a dança menina ainda, na escola do Clube de Regatas Vasco da Gama, no Rio de Janeiro. A professora achou que ela levava jeito e tratou de encaminhá-la para a Academia Nina Verchinina onde ficou durante doze anos, primeiro como aluna, depois como uma de suas principais assistentes. Passou também algum tempo ensinando dança moderna no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, quando encontrou Mercedes Batista. Este encontro, aliás, mudaria completamente o rumo de sua vida, como verificamos lá no início da conversa.
Hoje, inteiramente adaptada ao país que adotou faz questão de afirmar que sente saudades, sim. Mas que sabe espantá-la quando o coração aperta. “Vim porque quis e sempre tentei me aproximar ao máximo do jeito deles. Das coisas mais simples, como a comida, por exemplo, até a maneira de agir no dia a dia. Isso facilita muito a vida de qualquer pessoa em um país estrangeiro. Não adianta nada eu ficar aqui pensando no sol e nas praias do Brasil. O negócio é tentar descobrir outras coisas. Cada lugar do mundo tem suas vantagens e seus próprios encantos.”
Mas não se pode falar de Eneida sem mencionar outra pessoa que também tem uma participação mais que especial em sua vida, o marido Nilton Castro, um baiano de fala macia e sorriso largo, companheiro fiel que sempre soube dividir com ela todas as alegrias e tristezas. Cantor, compositor, percursionista, ele é mais conhecido como Niltinho. “Fizemos muito shows juntos”, acrescenta Eneida. “Atualmente, toda a parte musical do ballet é feita por ele. Trabalhamos assim, eu dando duro com os pés e ele, com as mãos. O Castro veio comigo para a Europa no grupo da Mercedes e vivemos juntos toda essa história!”
Cursos e workshops (chamados de stages) para os quais Eneida Castro é convidada em todo o mundo, inclusive no Brasil, são acompanhados por ele, responsável também pela música que movimenta os bailarinos da companhia, uma mistura bem dosada de ritmos africanos com pinceladas de influências clássicas do jazz e do blues.