Semana passada no auge da minha tpm me indicaram assistir um documentário que prometia mudar minha vida: Embrace, item obrigatório na lista de mulheres que estão nesse trabalho constante de amar seu corpo e viver um dilema menos pesado (sem trocadilhos infelizes) com suas gordurinhas. É um documentário que fala basicamente sobre padrões estéticos impostos pela sociedade e todo o bê-a-bá de como capas de revista fazem mal ao psicológico feminino. Tem de tudo: desde abordagem sobre transtorno alimentares, e como pessoas que já passaram pela situação conseguiram superar. Eu sei que assim, chorei do início ao fim, nada nunca tinha me afetado tanto da forma como esse documentário me afetou, aquela coisa de ter que pausar, chorar, respirar, tomar fôlego e voltar a assistir, porque é preciso tomar consciência das coisas que acontecem na nossa cabecinha.
Mas bom, acho melhor começar pelo começo.
Meu nome é Amanda, faço balé desde os 7, e tenho 19. Acho que 90% do que eu sou é formado por balé de repertório, por plié, tutus, e aquela coisa de ouvir música já imaginando a coreografia, esperar ônibus na primeira posição, etc, etc. Você sabe. A questão é que eu me identifiquei em número e grau com boa parte das cobranças de corpo que aquelas mulheres possuíam. Mas existe um diferença entre a justificativa da cobrança daquelas mulheres, e a justificativa das minhas cobranças. A justificativa delas, envolve mídia, sociedade, padrão estético, etc. A minha justificativa envolve isso tudo, mas 98% envolve a dança. E eu sei o quanto boa parte do mundo bailarinístico vai se identificar com isso também.
Desde que você ingressa no mundo da dança, do balé clássico especificamente, acaba entrando num mundo de vocabulário corporal que os meros mortais não entenderiam. O check list de físico “ideal” envolve: perna em X, colo de pé alto, ter muita rotação de quadril (vulgo en dehor), pernas longas,braços longos, quadril e ombros mais estreitinhos, pouco busto, pescoço alongado, e eis a bailarina perfeita. Mas daí, eis que você não tem a perna em X, porque é do tipo de coisa que você nasce, ou não nasce com a perna em X, é claro que tudo pode ser trabalhado: en dehor, flexibilidade, tudo pode ser muito bem desenvolvido. Mas então você entra na puberdade, com seus 12, 13 anos, você se olha no espelho, e além de você não ter perna em X, seu corpo começa a se desenvolver mais que os das meninas ao seu redor. O número de sutiã começa a aumentar, e usar collant de alcinha não é mais tão confortável assim, o tamanho do quadril aumenta, enquanto o corpo da sua colega do lado continua estreitinho, delicadinho, e miúdo como “deve” ser, cintura fininha, e a receita de bolo completa, está na menina na sua frente da barra, e no meio dessa bagunça de corpos você não se sente um bolo, você se sente um pudim. E ainda por cima você começa a ter coxas, bunda, mas olha, você é saudável, evita comer pizza, comida gordurosa em época de apresentação, é amiga dos legumes, é a mais saudável e ativa das suas amigas do colégio, mas ainda assim, sair para comprar collant ainda é uma tortura. Junta com toda a cobrança de não-quero-faculdade-quero-ir-para-o-Bolshoi, e hormônios, e amor, e querer ficar na fileira da frente na apresentação, e assim, não tem cabecinha que sustente tamanho caos.
Eu entendo muito perfeitamente o porquê desse padrão estético, já que o padrão do corpo russo é assim, do corpo francês é assado, mas aí calhou de você ser brasileira, e você tem que estar no formato desses outros corpos. Então eu vejo bailarinas fazendo dietas malucas, pão, carboidrato se torna um inimigo pro seu corpo e por aí vai. Meu objetivo não é propor uma solução para esse padrão estético clássico europeu ao qual nos é imposto a cada plié que fazemos. Minha proposta é abrir uma reflexão a respeito dessa cobrança individual exagerada que existe em cada corpo de baile Brasil a fora. Porque o ponto é que, ao contrário do que a mídia nos impõe a respeito do corpo violão, muito peito, muita bunda, cintura fina, o que a bailarina quer é ter sempre menos: menos barriga, menos busto, menos glúteo, menos tudo, se der para ficar na finura de um lápis com a perna em X e en dehor show, sonho realizado. Mas isso acaba consumindo a gente, porque a questão é, que mesmo as meninas que têm a perna em X, as meninas mais magrinhas, as meninas de en dehor show, as meninas de colo de pé perfeito, essas meninas estão tão insatisfeitas com seus corpos quanto as que não foram agraciadas pela genética com a satisfação de coxas que não encostam uma na outra. E isso é loucura! A gente odeia muito o nosso corpo, e com total motivo, que chance eu, com meu corpinho dentro da média, en dehor ok, flexibilidade ok, pirueta dupla, tenho com aqueles vídeos de bailarinas ossudas com o pé na cabeça dançando? É tão loucura meu médico me falar que meus exames de sangue estão ótimos, mas se eu emagrecer mais um quilo passo da minha massa normal, e aí o que fazer? Eu visto PP, mas quando estou fazendo aula me sinto gigante, consigo enxergar mais defeitos no meu corpo do que qualidades.
É claro que o balé exige um corpo mais longilíneo e magro por questões práticas mesmo, quanto mais leve uma bailarina for, mais fácil é para o partner levantá-la. Mas isso não pode beirar a subnutrição. Ser magra, não pode ser sinônimo de ser doente. O sentido de cobrança de corpo teria que ser muito o oposto do que é proposto pelas professoras e seus olhares julgadores, e as repreensões de “fulana, tá comendo pão de queijo? cuidado com isso aí!”. Não queremos bailarinas magras apenas, mas queremos bailarinas fortes, meninas saudáveis e que cuidem dos seus corpos, não que os odeiem durante 2h de aula. Nosso corpo se mantém ali, mesmo com os roxos, unhas encravadas, unhas caídas, calos, e as dores musculares de sempre. Ele está ali, respeitando cada comando que você envia na hora de fazer tendus e arabesques, o mínimo que devemos a ele é esse respeito também. Tem coisa no nosso corpo que não vai mudar não importa quanto tempo você pare de comer pão: tamanho do quadril, dos ombros, do busto. São cruéis demais os pensamentos que temos quando chega o dia das medidas do figurino, por medidas do nosso corpo que não vão se alterar, não importa o quanto você emagreça.
A proposta não tem que ser de tornar o pão, o sorvete de sábado, inimigos cruéis do nosso corpo. O nosso olhar para determinados alimentos não pode ser de veneno. A ideia seria usar a comida ao nosso favor, ir em busca daquela quase lenda do equilíbrio. Não ir em busca apenas de um corpo saudável, mas de um psicológico saudável também.
O balé não está aí apenas para as pernas em X e colos de pé incríveis, a dança está aí para as meninas com as coxas que encostam também. Tudo que a dança precisa é só de um corpo, então cuide dele para que ele continue sendo um corpo. A fita métrica não consegue mensurar os seus sentimentos enquanto você está no palco.
Foto: Rafael Mantesso