A falta que ele nos faz!
Em um distante 20 de junho, na não menos distante Araçatuba, cidade do interior de São Paulo, nascia o menino Nelson, filho de Herculano Theodoro Rodrigues, fazendeiro, engenheiro, dono de cartório e político, e de Irma Ridolphi Rodrigues, prendada dona de casa. Como todas as crianças que moravam distantes dos grandes centros urbanos, Nelson cresceu cercado de muito verde, subindo em árvores, “aprontando todas” na escola, frequentando aulas de catecismo e de natação que simplesmente adorava e que acabou lhe dando a medalha de campeão de salto de trampolim no melhor clube local.
Por ser o único filho homem da família, teve profissão designada pelo pai mesmo antes de nascer: seria engenheiro! (Pois sim! Só se fosse engenheiro de sonhos, como de fato aconteceu.) Bastou o Circo Dorami chegar a Araçatuba para deixar Nelson, 13 anos na época, absolutamente fascinado. E fascinado pela bailarina com seus passos delicados e gestos que pareciam sair de uma caixinha de música.
Até aquele momento nunca tinha ouvido falar em ballet, mas a amizade com o palhaço do Dorami deu a ele a oportunidade de fazer parte daquele mundo encantado. Foi aprendiz de trapezista, dava cambalhotas na cama elástica, enfim, fazia um pouco de tudo.
Em dezembro de 1943, partiu para São Paulo e nunca mais voltou. A garantia da alimentação e do transporte vinha de um modesto emprego como contínuo do jornal Diários Associados. As suadas economias ele guardava para assistir teatro, ópera, ballet.
No Teatro Municipal de São Paulo conheceu Joaquim Alvez Lima, que lhe falou sobre Maria Olenewa e o incentivou a estudar dança com a grande professora russa, fundadora da Escola e do Corpo de Baile do Municipal do Rio de Janeiro. Por um “acaso” do destino, naquele momento ela trabalhava na capital paulista. E em de março de 1944, depois da primeira aula com Olenewa, “alguém” puxou os cordões e fez a magia acontecer. A partir desse momento, Nelson desapareceria para se transformar definitivamente em Dennis Gray, nome, aliás, sugerido pela própria professora.
Flexível ao extremo, ágil demais e dono de uma força de vontade imbatível, o novo aluno não passou despercebido aos olhos da mestra. Depois de muito suor e muito sacrifício para executar pliès, tendus e battements ganhou uma figuração em Paganini, com a Companhia de Colonel de Basil. Em seguida, passou a fazer parte do corpo de baile do Municipal paulistano, dançando as óperas Rigoleto, Carmen e Thaís.
Em julho de 1945, acompanhado de seu grande amigo Johnny Franklin, desembarcou no Rio de Janeiro e logo se matriculou na Escola de Dança do Teatro Municipal. No mesmo ano apresentou-se pela primeira vez, dançando um dos faunos de Bacanal, da ópera Tannhauser, de Wagner. Em 1949, o mestre e coreógrafo tcheco Vaslav Veltchek, que dirigia a Escola de Dança e o Ballet do Municipal, nomeou Dennis Gray o primeiro danseur de caractère da companhia (um danseur de caractère recebe formação técnica idêntica a de um danseur-noble. Mas isso não quer dizer que um tenha mais valor que outro. O bailarino de caráter deve ser também um ator versátil, um mímico profundamente expressivo, ter extrema agilidade e dominar as danças folclóricas, talentos que Dennis Gray tinha de sobra). No mesmo ano, foi premiado como Bailarino-Revelação de 1949 pela Associação Brasileira de Críticos Teatrais. Entre os anos de 1950 e 1960 o Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro viveu um de seus maiores momentos sob a direção de Tatiana Leskova que organizava duas temporadas por ano. Sempre muito exigente com as coreografias e a postura dos bailarinos, insistia que Dennis Gray lembrasse sempre da grande mestra, Maria Olenewa. Sua passagem pelo Municipal fez com que o repertório da companhia enriquecesse demais, com obras tradicionais e outras coreografadas por ela mesma. Leskova valorizava muito bailarinos como Dennis Gray, esforçados e sempre buscando o melhor. Tal postura rendeu a ele papeis de destaque em todas as temporadas, e também o incentivo para se tornar coreógrafo.
Ao longo da carreira, o menino de Araçatuba passou a colecionar prêmios, tais como Medalha de Ouro como melhor bailarino de temporada (1951); Medalha Carlos Gomes (1965); Troféu Nijinsky (1968); Medalha de Melhor Coreógrafo Brasileiro (1979); Prêmio Golfinho de Ouro (1985) e Prêmio de Bailarino-Revelação, entre muitos outros.
Aliando a calma e a exigência de perfeição de um veterano, com o nervosismo e emoção de um estreante, ele se consagrou como bailarino e coreógrafo, deixando um rico legado para a dança no Brasil e muitas lembranças nos corações dos alunos que sempre seguiram seus ensinamentos. Dennis Gray tornou-se um artista completo. Sempre estudioso e esforçado, tudo no teatro despertava seu interesse. Fez mímica, interpretação, cenografia, música, mas ballet sempre foi a prioridade absoluta, servindo de lição e exemplo de dedicação para todos.
Para Manoel Francisco, bailarino, maître do Ballet do Theatro Municipal e um dos herdeiros do privilégio de interpretar Dr. Coppelius, “o personagem talismã” de toda a carreira de Dennis, segundo as palavras do próprio mestre. “Ele foi um dos grandes exemplos que tive, um artista ímpar, personalíssimo, um ator em cena, além de grande bailarino. Nossa vivência no Theatro Municipal do Rio foi como mestre e aprendiz, sempre com uma grande dose de generosidade. Cresci artisticamente observando, aprendendo com as lições do mestre. Suas interpretações de Sancho Pança em Don Quixote, Madame Simone em La Fille mal Gardée são antológicas. Fui ensaiado por ele pra interpretar Madame Simone, certamente um dos pontos altos de minha carreira. A oportunidade que esse papel dá ao artista é magnífica, e Dennis, com sabedoria e extrema boa vontade me deu orientação, rumo, conselhos. E foi espetacular sentir a reação da plateia a cada trapalhada de minha viúva Simone. Além do carinho e amizade que nos uniu sempre, o que mais me encantava e hipnotizava em Dennis era sua interpretação de Dr. Coppelius em Coppélia. Com absoluta certeza um dos maiores do mundo, ele foi louvado, aplaudido, incensado por esse que foi o maior papel de sua vida! E qual não foi minha surpresa quando agora em 2014 ganhei a oportunidade de ser eu o Dr. Coppelius na temporada de Coppélia no Theatro Municipal. Dividi a cena nesse ballet com Dennis inúmeras vezes, assistindo a majestosa interpretação do velho fabricante de bonecos. O que me serviu agora de inspiração pra homenagear meu mestre querido, que lá do céu deve ter ficado feliz com seu amigo e discípulo aqui. Minha intenção foi homenagear esse grande nome que além de amigo foi meu mestre; devo muito às magníficas histórias e episódios de sua vida que ele dividia com generosidade. Por essas e por outras é que me sinto feliz e realizado de poder perpetuar o nome de Dennis Gray, um dos grandes artistas do cenário brasileiro! Meu mestre e meu amigo pra sempre!”
Quanto a mim (autora deste post que vocês estão lendo), bem.… nunca fui aluna dele – nunca tive talento para ir tão longe – mas convivemos bastante quando ele assumiu a direção artística da Academia Johnny Franklin depois da morte do “professor”. Confesso, entretanto, que não resisti e “filei” algumas barras (centro, nunca!!!!!!!) devidamente ancorada na experiência das minhas queridas Camile Salles e Beth Tinoco. Entre as duas, se batesse uma crise de pânico, tinha de quem “colar”. Saía literalmente aos pedaços, mas feliz da vida. Acontece que Dennis Gray sabia tanto, mas tanto, e conseguia transmitir todos os seus conhecimentos com tanta maestria que até quando sentava no cantinho da sala sempre conseguia aprender alguma coisa.
Fazia o gênero zangado, muito zangado, bravo mesmo, impaciente, exigente e às vezes me parecia meio “travado” quando insistia em abraçá-lo. Mas eu fingia que não estava vendo e abraçava assim mesmo. O comportamento era o mesmo em momentos de muitos elogios. Não gostava, gostando muito. Uma pessoa fascinante, sem dúvida alguma.
Além do inesquecível Dr. Coppelius (perdi a conta de quantas vezes tive o enorme prazer de assisti-lo neste papel), outro que me marcou para sempre foi o da viúva Simone, em La fille mal gardèe. Quem viu certamente não esquecerá jamais. Como jamais esquecerá Dennis Gray!
Em 2005, aos 81 anos, ele se foi para sempre, cercado de muitas homenagens de artistas do Rio de Janeiro e de todos os seus colegas no Theatro Municipal.
Para sempre????
Tenho minhas dúvidas.
Pessoas como Dennis Gray não morrem, ficam encantadas.