Uma garotinha chamada Tatiana Leskova

Poucos artis­tas cau­sam uma impres­são tão forte quanto a grande dame do bal­let Tatiana Leskova. Seja pela viva­ci­dade, ener­gia, rapi­dez de raci­o­cí­nio e um olho clí­nico afi­ado como uma lâmina…

Dona Tânia (como é cha­mada no meio e pelos ami­gos), russa de ori­gem, fran­cesa de nas­ci­mento e bra­si­leira de cora­ção, tem seu nome escrito em ouro no mundo da dança. Bisneta do grande escri­tor russo Nikolai Leskov, aos 13 anos era bai­la­rina do Opéra Comique em Paris, aos 16 inte­grava o elenco do Original Ballets Russes du Colonel de Basil, com­pa­nhia cri­ada após o fim das ati­vi­da­des do famoso Ballets Russes de Diaghilev.

Seus com­pa­nhei­ros já eram, naquele tempo Fokine, Nijinska, Balanchine, assim como Miró, Picasso, Stravinsky e Rachmaninov. Além de ter diri­gido o Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro em várias oca­siões (a par­tir de sua vinda para o Brasil em 1944), ela for­mou bai­la­ri­nos que hoje se espa­lham pelos qua­tro can­tos do mundo, lite­ral­mente. Detentora dos direi­tos das obras de Leonid Massine, D. Tânia remonta mundo afora esses bal­lets. E recen­te­mente remon­tou para a São Paulo Companhia de Dança (a con­vite da dire­tora Inês Bogéa), o Grand Pas de Deux de O Quebra-Nozes, que está sendo apre­sen­tado nesse momento pelo país. Além de sua bio­gra­fia escrita por Suzana Braga, “Tatiana Leskova, uma bai­la­rina solta no mundo”, está lan­çando agora um livro com fotos de sua bri­lhante e gran­di­osa car­reira. Ufa! Tudo isso junto aos pre­pa­ra­ti­vos das come­mo­ra­ções de seus 90 anos, dia 06 de dezem­bro próximo!


Tatiana Leskova em “Bodas de Aurora”, do bal­let A Bela Adormecida.

Não conheço nin­guém com a viva­ci­dade de D. Tânia. Assim como tan­tos artis­tas bai­la­ri­nos, tra­ba­lho com ela e sob sua ori­en­ta­ção desde que me entendo por gente, ainda aluno em for­ma­ção, e até hoje, pro­fis­si­o­nal esta­be­le­cido, quando nos reen­con­tra­mos durante minha estada em São Paulo, ela remon­tando O Quebra-Nozes, eu remon­tando Don Quichotte, ambos pas de deux que fazem parte do reper­tó­rio da São Paulo Companhia de Dança.

Fazer assis­tên­cia pra essa grande dama, por quem tenho um amor puro e ver­da­deiro, res­peito sem fim é indes­cri­tí­vel, como assis­tir diante de mim a his­tó­ria da dança sendo escrita ao vivo, ter lugar pri­vi­le­gi­ado ao mesmo tempo como admi­ra­dor e dis­cí­pulo. E não sou só eu quem diz. Pergunte a Márcia Haydée, Ana Botafogo, Nora Esteves, Marília Pêra (pra citar pou­cas pes­soas…); todas as res­pos­tas serão unâ­ni­mes, no res­peito e no carinho.

São tan­tos epi­só­dios, que eu pode­ria escre­ver mais um livro sobre ela, mas como esse não é o caso, quero dei­xar nessa crô­nica regis­tra­dos a impor­tân­cia, o peso e o pri­vi­lé­gio de tra­ba­lhar com esse mons­tro sagrado da arte da dança.
Tenho enre­dos mara­vi­lho­sos com D. Tânia, mas vou citar dois que me são muito caros, epi­só­dios que jamais esque­ce­rei. Aos 19 anos, solista do Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, sob sua dire­ção, dan­cei de sur­presa pela pri­meira vez com Cecília Kerche a suite do bal­let PAQUITA, na ver­são da sau­dosa mes­tra Eugenia Feodorova. Eu assis­tia um ensaio em pé das coxias, quando alguém toca meu ombro (ela) e com sua voz firme de sem­pre me diz: “Francisco Timbó se machu­cou, ama­nhã você dança Paquita com Cecília, vamos ensaiar!”. Eu não era elenco desse bal­let, mas com a ajuda des­sas mes­tras e o apoio de Cecília e dos cole­gas, aprendi, em 2 ensaios, toda a core­o­gra­fia para entrar em cena na noite seguinte, para jamais esque­cer essa alegria…!

Cecilia Kerche e eu no Grand Pas de “Paquita”, junto ao Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, 1987.

O outro epi­sódio ines­que­cí­vel foi quando ela estava na capi­tal fran­cesa remon­tando “Les Présages”, de Leonid Massine, para o Ballet da Ópera de Paris. Eu, que nessa altura (1989/1990) dan­çava no Ballet da Ópera de Zurique, na Suíça, peguei um trem e fui pas­sar um fim de semana com a mes­tra e assis­tir um pouco de seu tra­ba­lho junto a uma das mai­o­res e mais impor­tan­tes com­pa­nhias de bal­let de todos os tem­pos. Foi aí que vi pela única vez em minha vida Rudolf Nureyev pes­so­al­mente, então dire­tor da com­pa­nhia. Quase caí duro quando no palco do Opéra de Paris, antes de um ensaio de orques­tra, fui apre­sen­tado por ela à esse deus da dança!!! Minhas per­nas tre­miam ape­nas por estar ali, naquele palco sagrado, tro­cando idéias, de papo com Tatiana Leskova e Rudolf Nureyev. Um sonho real. Imagem que jamais esque­ce­rei!
Agora, já de volta ao Brasil há alguns anos, tenho imensa feli­ci­dade por con­vi­ver sem­pre com minha mes­tra, tra­ba­lhando ou em encon­tros memo­rá­veis que ela pro­move em sua casa, reu­niões, jan­ta­res infor­mais, onde ami­gos, dis­cí­pu­los dela ou não, se reú­nem em torno de ótimas con­ver­sas e uma mesa sem­pre farta.


Eu atento enquanto D. Tania cor­rige Luiza Lopes e Diego de Paula no Pas de Deux de O Quebra-Nozes. Setembro 2012.

Durante um ensaio da vari­a­ção da Fada Açucarada (de O Quebra-Nozes), aqui na São Paulo Companhia de Dança, ela que­ria fazer com­pre­en­der a bai­la­rina de que modo deve­ria ser exe­cu­tada uma sequên­cia de pas de bour­rés… De repente ela diz, fazendo com as mãos o gesto: “Você deve fazer o pas de bourré pero­lado, como cor­rem pelo chão as péro­las de um colar que se parte…”. Ficamos todos com os olhos rasos d’água, pela geni­a­li­dade dessa ana­lo­gia, desse momento tão ins­pi­ra­dor, que foi pron­ta­mente com­pre­en­dido e absor­vido pela bai­la­rina. Como sem­pre sua devo­ção e amor pela dança são admi­rá­veis, não há nada que D. Tânia nao faça pelo ofício.

De uma sin­ce­ri­dade cor­tante às vezes, uma per­so­na­li­dade muito forte, altiva na sabe­do­ria e ele­gân­cia, assim como a outra Tatyana, heroína do bal­let ONEGIN, que John Cranko criou para Márcia Haydée, não por acaso uma dis­cí­pula de Leskova. Ela não gosta de baju­la­ção, e já bri­gou comigo mui­tas vezes por causa disso. Até que com­pre­en­deu que era amor e cari­nho, não baju­la­ção. E nos damos muito, muito bem.

Sei do pri­vi­lé­gio dessa con­vi­vên­cia. Às ves­pe­ras da come­mo­ra­ção pelos seus 90 anos, até que eu volte pro Rio de Janeiro, em dezem­bro, nos fala­mos por men­sa­gens e e-mails. Que ela me envia de seu iPad com uma inti­mi­dade que só uma garo­ti­nha nas­cida na segunda década do século XX pode ter com a tec­no­lo­gia de ponta do século XXIE viva Tatiana Leskova!

D. Tania entre­tida com seu IPad. Setembro 2012.

Por: Manoel Francisco atua como maitre de ballet e repetiteur junto ao Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro e como convidado de festivais e companhias nacionais e estrangeiras.

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