Na primeira temporada de 2012, o Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro dançou a obra prima “A Criação”, do coreografo alemão Uwe Scholz (1958–2004), sobre o magnífico oratório de Haydn. Obra que reune Ballet, Coro e Orquestra num momento de rara beleza e plasticidade. Isso aliado ao fato de Uwe ter sido meu diretor durante os anos que dancei no ZURICH BALLET, na Suiça, é uma otima oportunidade pra falar desse gênio da coreografia.
Uwe é cria do Stuttgart Ballet, sob as asas cuidadosas e olhos vigilantes de Marcia Haydée, que foi quem identificou no fragil garoto o tino, o talento pra coreografia, e o nomeou, aos 26 anos de idade, coreógrafo residente da companhia.
Isso resultou no convite pra dirigir o Ballet da Ópera de Zurique dois anos mais tarde, aos 28 anos, em 1986. Foi entao que ele criou (dentre tantas) essa que seria sua assinatura, sua obra mais famosa, que ja e dançada por companhias pelo mundo afora.
Tive a alegria de dançar “A Criação” mais de duzentas vezes e tenho ainda nos ouvidos a voz de Uwe, suas sugestões gentis, suas correções, seu olhar de lince. Nunca vi ninguem com musicalidade igual, com tamanha busca pela plasticidade, pela beleza nao so de movimentos, mas a uniao entre corpos que se movem com a música que os sustenta.
Tem-se a sensação de que a música nasce dos corpos que flanam em perfeita harmonia, num sincronismo com a música como poucos genios da coreografia ja foram capazes.
Uwe Scholz trilha o mesmíssimo caminho por onde ja passaram Balanchine e Cranko, por exemplo. Cada vez mais me dou conta da importância e do tamanho que tem o fato de eu ter trabalhado diretamante com ele.
Essa e a terceira temporada que o Ballet do Theatro Municipal faz de sua grande obra, nas duas primeiras (em 2005 e 2006) tive tambem a felicidade de remontar seu trabalho, transmitindo pra companhia os ensinamentos dele que ainda ecoam na minha cabeça, tentando ser o mais fiel possível ao que ele desejava do seu trabalho: uma execução técnica limpa e de uma precisão impar, tudo isso aliado a um sentimento, uma artisticidade, emoçao imensa que Uwe exalava.
Sempre tive a impressão que tanta emoção não cabia dentro dele, uma peculiaridade de todo gênio, era como se esse mundo nao fosse exatamente pra ele, que devia se sentir ligeiramente desconfortavel e pouco compreendido. Ele era emoção em estado purissimo.
Eu fazia parte do pequeno grupo que ele frequentava fora do trabalho, e me lembro das reuniões em sua casa, onde ouviamos música da melhor qualidade (NUNCA vi ninguem com TANTOSCDs na minha vida, Uwe tinha literalmente TUDO, em varias versões…), reuniões essas regadas a bom papo e bom vinho. Apesar de sua timidez quase patológica, nesses momentos de maior descontração se revelava alem do gênio, uma pessoa de maneiras delicadas, pensamento muito veloz e de uma inteligencia e humor afiadíssimos. E tocava piano magnificamente…
Sob sua direçao, alem da “Criaçao” e várias outras obras geniais como sua coreografia sobre o Concerto #3 para piano de Rachmaninov, tive muitos momentos brilhantes. Dancei Romeu e Julieta de John Cranko ao lado de Marcia Haydee, Richard Cragun e Birgit Keil. Fui Gurn ao lado de ninguem menos que Peter Schauffuss como James em “La Sylphide”. Fiz turnes memoraveis… Foram 6 lindos anos sob a direção desse homem espetacular.
Tantas memorias lindas, profissionais e pessoais, pois morar numa cidade como Zurique é privilégio puríssimo. Imagine o paraíso, onde tudo funciona como um relogio suiço..! Desculpe o trocadilho, mas é assim mesmo: Um lugar seguro, lindo, onde todos os serviços funcionam perfeitamente, do transporte público à saúde. Ahh, Oxalá o Brasil consiga chegar proximo disso com tempo e administração séria!
Das melhores sensações do mundo essa, de olhar pra trás e ter saudades de um tempo que vai tomando cada vez mais importância. De ver que é emocionante ter enredo pra contar, historia pra dividir.
E onde quer que eu va carrego os brilhantes momentos que dividi com esse magnífico artista e amigo Uwe Scholz, que tão precocemente morreu. Mas sua obra esta ai, sendo descoberta por cada vez mais pessoas, companhias, diretores. Que seja eternizada sua memória, perpetuado seu talento atraves dos tempos, e assim, quem sabe, outros poderão sentir de perto a grande genialidade desse artista.