“Se não saiu da aula com dor é porque não fez direito”. Quantas vezes bailarinos já ouviram essa frase ao terminar uma aula de 1h30? Pois é. Faz tempo que me questiono o porquê do balé clássico propagar tanto essa cultura da dor.
Por que o desconforto corporal do bailarino precisa ser um sinalizador da boa execução de movimentos? Será que essa é a melhor forma de avaliação? Ao se fazer este tipo de estímulo à necessidade de haver dor, muitos bailarinos acabam por retardar tratamentos, uma vez que acreditam que a dor no corpo é algo natural da prática.
O que é importante se verificar é que um bailarino não é apenas um artista, que trabalha com a performance no palco e com a expressão de movimentos. Ele também é um atleta, que vive sob a exigência corporal constantemente.
Os treinos longos e exaustivos, além da realização de movimentos extremistas, fazem com que o cuidado e a prevenção de lesões sejam fundamentais na vida de um dançarino. Ou seja, é imprescindível que os exercícios preparatórios para a aula sejam adequados para que o corpo sustente as condições dos movimentos.
Em 25 anos de experiência em aulas de balé e academias de dança (foco no balé clássico), vivencio uma falta de debate com relação à preparação corporal apropriada para essa atividade física, o que, consequentemente, leva a uma falta de atualização na metodologia de ensino. Nas danças contemporânea e moderna já há um equilíbrio maior sobre isso, destacando mais a prevenção corporal.
É mais do que natural que haja uma resistência no balé clássico, já que o ensino foi tão bem e fortemente instaurado pela escola russa (Vaganova), embora tenham surgido outras escolas como a americana, londrina, cubana, entre outras. No entanto, vejo que o envolvimento com a dor é parecida em todas elas. O lema de que uma bailarina deve sentir dor para ser boa é geral. E o meu confronto vai de frente com esta realidade.
Como construir um novo olhar sobre as aulas e o conceito do balé, quando se está entranhado nessa realidade? Ao longo da vida machuquei o quadril, joelho e tornozelo por causa da dança e resolvi reanalisar a maneira com que eu me deparava e me relacionava com o exercício.
A reviravolta surgiu, quando ouvi do meu fisioterapeuta a seguinte pergunta: como vocês podem acreditar que um primeiro exercício de aula em que se repete 16 vezes pliés e 8 vezes grand pliés é um aquecimento adequado ao corpo? Não vêem que há uma sobrecarga no corpo sem nem ao menos haver uma preparação para isso?
Foi um estalo. Se pararmos para pensar, o balé foi desenvolvido para executar movimentos completamente contrários aos movimentos habituais do corpo. Nossa estrutura não foi feita para andarmos com as pernas en dehor (rotação para fora), para levantá-las em ângulos altíssimos ou dobrar as costas até quase encostar a cabeça na perna.
Obviamente não podemos subestimar o potencial do corpo humano e claro que ele pode se adequar e realizar estes movimentos.
Mas enquanto não houver uma compreensão do tempo de aprendizado e limite de cada corpo, muitos bailarinos ainda se machucarão.
É preciso ter mais respeito ao indivíduo e isso ocorrerá no momento em que houver forte reflexão sobre a metodologia adotada nas aulas de balé e melhor compreensão sobre a estrutura e fases de desenvolvimento corporal de cada um.
Esse, provavelmente, é o grande desafio e o ponto de partida para que o ensino do balé clássico possa se renovar, focando no bem-estar do dançarino e não no grau de dor ou nível de transgressão do movimento. E o tradicionalismo dessa dança não deve ser um impeditivo para isso. Afinal de contas, Vaganova modificou muita coisa que já era ensinada na Rússia à época.
Que tal inverter os papéis: a saúde do bailarino ser mais bem cuidada e valorizada do que a perfeição do movimento? Talvez, com este pensamento em destaque, algumas coisas comecem a mudar.