Bailarinas são muito magras, muito jovens e precisam começar muito cedo.
Na contramão (como sempre) de todos esses dogmas que ouvi durante a vida inteira, lá estava eu, com 37 anos, acho, pronta (coque, rede, sapatilha, collant) para a minha primeira aula de ballet clássico numa turma de adultos iniciantes. Não era nada jovem, muito magra nem reencarnando mil vezes e estava começando bem depois do tempo regulamentar. A meu favor apenas a vontade de acertar e a paixão pela dança. Não tive um desempenho brilhante como esperava, mas também passei longe do desastre total, o que já foi mais que suficiente. Aos poucos, entretanto, todos os fantasmas ficaram para trás. Fui acertando o passo. Literalmente.
Três meses depois dessa “estreia” tivemos uma prova. É, prova, com banca examinadora e tudo. (na Academia Johnny Franklin tudo era levado muito a sério. E uma das primeiras e mais importantes regras que aprendi no ballet foi que disciplina é tudo. Isso, claro, incluía uniforme em perfeita condições, cabelo preso, tudo impecável sempre). Voltando! Durante a prova, já no centro, letra C, não deu outra: fiquei Tetê-à-tête com os professores que formavam a banca. Diante de tanta tensão, desci e subi em um grand-plié sem cair, tremer ou pipocar. Vitória!!!! Assim o tempo passou, as dificuldades aumentaram e a paixão, mais ainda. Continuei por muitos anos, alguns “adultos” desistiram e a turma acabou se mesclando com outra, de adolescentes, uma delícia de convivência quando não são nossos filhos.
Um dia, a professora finalmente anunciou o momento mais esperado de todos. Na semana seguinte começaríamos a usar sapatilha de ponta. Uhuuuuu!!!!!!!! Afinal esse é ou não um dos grandes sonhos de toda bailarina? Se dói? Dói e dói muito. Dá para suar frio de dor e até pensar em desistir, enxugando – ao mesmo tempo — lágrimas e suor. Esse lado do sonho não é nada glamuroso. As unhas encravam, os calos incomodam, os pés pedem socorro a todo instante. Mas também a todo instante vem a agradável sensação de ter percorrido – pelo menos – uma boa parte do caminho.
Na vida, entretanto, como nem sempre a música toca do jeito que a gente gosta, precisei parar durante um bom tempo. Não deveria, mas não deu para ser diferente. Quebrei um juramento que fiz a meu médico que por nada, nada mesmo, largaria o ballet. “Você não tem ideia dos benefícios que a dança fez ao seu corpo ainda que a longo prazo.” Não era uma opinião qualquer. Era o profissional mega competente e o amigo super querido dizendo a mesma coisa. Mas eu parei e me arrependo até hoje. Parei quando já conseguia fazer passés e equilíbrios na ponta, enfim, ainda faltava muito para chegar lá, mas já me sentia quase uma primeira bailarina.
Atualmente, em outra academia, para onde fui resgatada via facebook por minha professora (e amiga) lá do início da história, estou longe de fechar a quinta dos meus sonhos. Entendi que não dá pra lutar contra o tempo e me conformei. Então capricho na expressão, no alongamento, nos braços, (adoro ports des bras, souplessses, cambrés) me coloco o mais en dehors possível, procuro investir no sentimento que chega até mim através da música e dos passos, já que a técnica, bem, a técnica ainda tropeça bastante. Mas se a pirueta de quarta não aconteceu, se as pernas não saíram ao mesmo tempo no sissone ou se os braços do primeiro arabesque falharam, sempre resta a emoção de ter tentado. E a vontade de tentar outra vez. Para acertar definitivamente.
foto: reprodução
Não sou apaixonada apenas (!!!) pelas aulas. Espetáculos de dança (sempre a clássica em primeiro lugar) conseguem me hipnotizar. Gosto de tudo, de examinar cada detalhe, cada expressão, cada gesto. E de sonhar, sonhar, sonhar. Fico imaginando quantos anos de ensaio, quantas horas de aula e quanto sofrimento aquela criatura que está em cena (leve, ágil, serena e sorridente em seus muitos fouettés en tournant) precisou enfrentar. Talvez por isso sempre afirme que bailarinos são seres de outro planeta. Que desafiam o tempo e o espaço, desvendando da forma mais linda e delicada possível a mágica do movimento.
Costumo dizer que troquei o analista pela sapatilha de ponta. Não estranhem. É que jamais conseguiria descrever com exatidão as sensações que aulas de ballet provocam em mim. Quem faz, quem faz lutando contra ideias pré — estabelecidas, quem “briga” por aquele pedaço da barra, quem vira o mundo ao contrário para não perder um segundo de aula ou quem dribla os próprios limites sabe do que estou falando. É como se eu recebesse uma carga extra de eletricidade, acompanhada de uma sensação de bem estar que o analista também dá, claro, mas de outra maneira. No final ambos buscam ninar um pouco a alma da gente. E este aconchego é certamente a melhor de todas as recompensas.
Afinal, a vida perderia a graça se não pudéssemos responder ao estranho chamado de “Prepara! 5, 6, 7, 8”.