Um dos maiores problemas no treinamento de flexibilidade está relacionado com a dor que sentimos. Sempre temos aquela sensação de que sentimos mais ou menos dor que o nosso colega, ou que aquele aluno esta fazendo “drama”. Mas será que pessoas diferentes sentem dor de forma diferente?
A dor é uma função vital do sistema nervoso, uma sub modalidade de sensação somática destinada a alertar sobre danos, ameaças ou perigo para os tecidos. É uma experiência sensorial e emocional, afetada por fatores psicológicos como experiências, crenças sobre dor, medo ou ansiedade (Anderson e Hanrahan, 2008; Claus e MacDonald, 2017). No entanto, há muitas situações em que a percepção sensorial pode não refletir com precisão o que está ocorrendo nos tecidos (Claus e MacDonald, 2017). Idealmente, os estímulos sensoriais (estresse mecânico, químico, exposição ao calor ou ao frio) deveriam ser representados com precisão após a interpretação do cérebro (Claus e MacDonald, 2017). Isso significa que para o mesmo estímulo, o mesmo nível de dor entre as pessoas deveria ser percebido, porém, em vez disso, pesquisas encontraram diferentes níveis de percepção da dor para o mesmo evento (Coghill et al., 2003)!
Os nociceptores são receptores sensoriais responsáveis pela detecção de estímulos nocivos (desagradáveis). Eles transformam os estímulos em sinais elétricos, que são então conduzidos ao sistema nervoso central. Eles são terminações nervosas para a detecção de estresse mecânico, estímulos químicos e térmicos (os quais detectados acima de determinados níveis podem causar lesões). Eles são encontrados em abundância na pele, articulações, ossos, músculos e outros tecidos moles (Claus e MacDonald, 2017). No músculo esquelético, as terminações nervosas livres são distribuídas uniformemente por todo o comprimento do músculo (Mense, 2010). O termo “terminação nervosa livre” indica que, no microscópio de luz, nenhuma estrutura receptiva (corpuscular) pode ser reconhecida, ou seja, há um espaço entre a terminação e os receptores. Uma terminação nervosa junto com sua fibra aferente é chamado de “unidade aferente” (Mense, 2010).
Uma vez detectado pelas terminações nervosas, o estímulo é transmitido à medula espinhal. A quantidade de estímulos, no entanto, pode ser distorcida; diminuida ou amplificada durante o processo (sensibilização periférica) (Claus e MacDonald, 2017). A medula espinhal e o cérebro também podem modificar os estímulos (sensibilização central) (Claus e MacDonald, 2017). Somente depois que o cérebro interpretou o estímulo é que a dor é considerada uma percepção (Claus e MacDonald, 2017) e sua intensidade pode ser classificada pela pessoa. As memórias de perigo ou lesão, ou mesmo a antecipação da ameaça podem ser suficientes para induzir uma via reversa, estimulando o cérebro a perceber a dor mesmo sem qualquer estresse no corpo (Claus e MacDonald, 2017).
A principal dificuldade na avaliação da dor, seja em ambiente clínico ou de pesquisa, é que a dor é uma experiência subjetiva. De fato, a variabilidade entre os indivíduos pode ser elevada em condições semelhantes (mesma sala de aula de ballet, mesmos exercícios e mesma intensidade) (Edwards, 2005; Gracely, 2006; Khan e Stroman, 2015), e a variabilidade entre o mesmo individuo também pode ser alta devido à habituação (se ele esta acostumado ou não com o exercício) (Slepian et al., 2017), dimensões psicológicas (se ele esta motivado ou não em realizar o exercício ou adquirir determinado desempenho) (France et al., 2002; Drahovzal et al., 2006) e fatores contextuais (incluindo até a fase do ciclo menstrual para as mulheres) (Kamping et al., 2016).
Bailarinos foram comparados com pessoas de outras modalidades e obtiveram melhor resultado no teste de tolerância a dor generalizada (Tajet-Foxell and Rose, 1995). Uma das justificativas encontradas pelos autores foi de que os bailarinos são acostumados a sentir dor e por isso podiam tolerar mais dor do que os não-bailarinos. A entrada sensorial do corpo, pensamentos, sentimentos, expectativas e emoções pode contribuir para o jeito que o cérebro percebe a dor e responde a ela (Claus e MacDonald, 2017).
Em um estudo qualitativo, bailarinos foram entrevistados e pediram para eles definirem o que a dor significava para eles. Apesar de terem tido dificuldade em definir o que é “dor” (Anderson e Hanrahan, 2008, Thomas e Tarr, 2009), eles puderam listar suas características. Quarenta e três por cento daqueles que relataram dor recente relacionada à dança não consideraram que a dor constituía uma lesão. Eles também classificaram a dor em duas categorias: dores “boas”, também chamadas dores de treinamento ou alongamento, algo que você “faz para você” e dores “ruins”, como dores de lesão (Thomas e Tarr, 2009). Anderson e Hanrahan (2008) classificaram a dor em seu estudo como “dor de desempenho” e “dor de lesão” e ressaltaram a importância de uma distinção entre elas para poder alterar a capacidade de enfrentamento. Se os bailarinos não sabem identificar a dor que sentem durante o alongamento, por exemplo, da dor que sente quando estão lesionados, o risco de agravar lesões que seriam rapidamente tratadas é muito grande.
A dor ao alongamento é um dos aspectos da propriocepção ou percepção de si mesmo (Berardi, 2016). Estudos recentes informaram haver uma relação entre a dor e as sensações de alongamento (Ramel et al., 1999; Morishita et al. ., 2014). Portanto, o termo “dor de alongamento” pode ser definido como a dor associada a estímulos de alongamento nos músculos esqueléticos (Ramel et al., 1999). O controle da dor de alongamento é necessário para aumentar a amplitude de movimento (Morishita et al., 2014). A quantidade de tensão aplicada no alongamento varia de acordo com a sensação do sujeito (Weppler e Magnusson, 2010), porém, a sensação do sujeito varia também devido a propriedade biomecânica de seus músculos.
Estudos comparando pessoas mais e menos flexíveis mostraram que pessoas mais flexíveis sentem menos dor ao alongar. Isso significa que aquele aluno que mais precisa melhorar a flexibilidade é também aquele que mais sente dor ao alongar. Um outro estudo mostrou que pessoas mais rígidas sentem mais dor ao alongar que pessoas menos rígidas (Blazevich et al., 2012). Entenda rigidez como a resistência que o músculo exerce contra o alongamento, ou seja, aquele aluno que você tem que fazer mais força para alongar no mesmo ângulo que outros alunos, provavelmente sente mais dor ao alongar.
Pessali-Marques (2015) comparou a resposta a dor do alongamento entre bailarinos e não bailarinos e encontrou que os grupos respondem de maneiras diferentes. Como é exatamente essa resposta ainda está sendo investigado.
É importante ressaltar que devido a todos esses fatores influenciando a percepção da dor, não existe uma regra. O professor deve ser sensível o suficiente para observar seus alunos e descobrir quando estão no seu máximo tolerado ou não. Converse com seus alunos, explique a eles como lidar com essa dor, não ignore o que dizem. Infelizmente tive uma distensão séria no meu membro inferior esquerdo causada por uma professora que resolveu “achar” que eu não estava alongando no meu máximo porque não fazia “cara de dor” e me deu um “empurrãozinho”. Para piorar a situação, eu não sabia que havia me machucado apesar de ter saído da aula mancando. Achei que aquela dor, apesar de muito mais forte do que todas as outras que eu havia sentido ao alongar era normal… ela me fez criticar a mim mesma, passei a achar que eu estava me “enrolando”. Porém, eu não estava, e minha perna nunca mais foi a mesma.
Existem vários estudos mostrando diferentes estratégias de enfrentamento da dor e o Bastidores desenvolveu um método para como controlar a intensidade do alongamento individualmente na sua sala de aula, mas isso é assunto para o próximo post!!
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