Tombé, pas de bourrée, glissade, pas de chat! Tombé, pas de bourrée, glissade, pas de chat! Tombé, pas de bourrée, glissade, pas de chat.
A voz da professora é enérgica. As alunas evoluem na diagonal da sala, repetindo, compassadamente, a sequência de movimentos. Repetem uma, duas, três, vinte vezes. O cansaço é visível, mas elas não param. Só mesmo quando a música chega ao fim e a professora troca de passo. Baterias e grandes saltos revelam que está quase no final. A reverence sinaliza que a aula acabou. Pelo menos aquela, acabou.
A turma parece exausta. O suor escorre pelo corpo, marca o chão de tábuas corridas, deixa no ar uma atmosfera tensa, de trabalho duro e sofrido. Pés esfolados, calejados, inchados, músculos doloridos, absolutamente esgotados por fouettès e battements intermináveis. Ao contrário do que se possa imaginar, entretanto, tudo isso significa felicidade, bem-estar, realização. A cena — que pode até parecer estranha para alguns — na verdade é mais uma etapa na exaustiva rotina de bailarinas e bailarinos.
Uma das alunas, a mineira Clara Spinelli Bittencourt, 25 anos (em nada mesmo parece diferente das outras), mas – acreditem – é deficiente auditiva. Apesar disso, dança e dança lindamente. “Minha mãe era professora de ballet e tinha uma academia na pequena cidade onde morávamos em Além Paraíba. Cresci nesse meio. Assim – aos quatro anos — o ballet chegou até mim, através de minha mãe. Já dançava dentro da barriga dela, acredito!”
Aliás, esta é a vida de Clarinha que adora dançar em qualquer tempo ou lugar. “Comecei a fazer aulas cedo e não parei mais. Sinto a música através da vibração do som, funciona mais ou menos como se fosse telepatia. A contagem e o ritmo começam ao mesmo tempo, sempre, claro, com a ajuda dos professores. Desta forma a energia da música entra no meu corpo pelos pés, pelos braços e pela mente. Fiz tratamento com uma fonoaudióloga para aprender a linguagem oral falada. Em função disso não tenho problemas nessa área. Quanto a ouvir as restrições são maiores já que minha audição é residual. Infelizmente não uso nenhum tipo de aparelho. São todos muito caros e não temos – minha família e eu – renda suficiente para comprá-los.”
Guardar a sequência dos passos durante as aulas é bem mais fácil para ela. “A grande dificuldade é quando – sem querer – a professora fica de costas, e não dá para acompanhar a linguagem labial. Assim me perco mesmo e fico sem saber realmente qual é o passo que vem a seguir. Quando danço, sinto uma felicidade e um orgulho tão grande que me vem a certeza de que nada é impossível. Basta querer. Os obstáculos me fazem tentar melhorar mais ainda. Meu coração fica tomado por sentimentos de paz, liberdade e bem estar.”
Ela pode até não ouvir a música, mas confessa que a musicalidade vem de dentro para fora do seu corpo. “Preciso da vibração para sentir os sons e isso só acontece quando a música está bem alta. Já quando salto, perco este contato. Aí preciso me guiar pelo ritmo e pela contagem dos compassos.”
Clarinha gostaria muito de ser bailarina profissional, mas diante de tantos problemas e da falta de incentivo do governo– que se recusa a investir em cultura — sabe que não pode ir longe demais. Recebe muita ajuda dos amigos, reconhece a generosidade infinita de algumas pessoas, mas admite que para “adotar” o ballet como profissão precisaria de muito mais.
Aluna aplicada do Centro de Artes Madeleine Rosay e de Sahyli Presmanes, faz questão também de agradecer a professora Claudia Freitas, da Sala Lennie Dale, que acompanha seus passos desde pequena. “Clara é extremamente comunicativa e a linguagem da dança tornou-se a sua própria forma de se comunicar. Ela é capaz de traduzir e colocar a alma nos movimentos que excuta com a mesma sensibilidade de quem escuta ou até ainda melhor”, acrescenta Claudia.
Com a força das professoras, ambas grandes incentivadoras de sua carreira, acredita no sonho de um dia — apesar dos obstáculos – vir a ser uma grande bailarina. “Sou exigente comigo. Estou sempre me esforçando para dar o melhor de mim em tudo que faço. Além disso, é extremamente prazeroso trabalhar com o corpo, transmitindo sentimentos e emocionando as pessoas.”
A menina que “ama a vida” também sonha com um curso de pós-graduação em Arquitetura e, claro, com outro de ballet, os dois fora do Brasil. E deixa um recado muito especial e extremamente delicado (assim como ela) a todos que acalentam o mesmo ideal. “Não tenha medo. Nunca é tarde para começar. Importante mesmo é fazer aquilo que nos dá prazer sempre com muita dedicação. Os sonhos não podem deixar de fazer parte da nossa vida. Mas é preciso esforço para que eles virem realidade. Sonhos sem atitudes ficam apenas no pensamento. É importante que se transformem em ações.”
Agora, emocione-se também (e muito) com as palavras “encantadas” de Clara Spinelli Bittencourt especialmente dedicadas a Cristina Martinelli, uma de nossas maiores artistas.
“Lembro tão bem .… eu não tinha referência profissional até conhecê-la. Minha admiração por ela é enorme, seja pela superação, pela motivação, não importa. Bendito o dia em que resolvi colocá-la na minha vida. Aprendi tanto, mas tanto!
Cristina chegou como uma manifestação artística, expressando símbolos. Como sou deficiente auditiva e ela estava bem do meu lado sempre mergulhada em um belíssimo trabalho corporal, a expressividade de seus movimentos, me ajudou a senti-la, mesmo sem escutar a música. E assim – colocando para fora o lado mais profundo de suas emoções e de seu talento – me fez perceber que ali começava o verdadeiro ritmo do coração.
Devo demais a ela. E é com profunda gratidão que agradeço as lágrimas, os risos e muitas outras sensações que hoje fazem parte de mim. Por suas mãos fui conduzida ao que existia de mais sensível neste mundo de magia que é a dança de estar viva. Ajudou-me também a fazer da sobrevivência um caminho para conviver com minha alma de artista. Fico imaginando o quanto Cristina Martinelli lutou para vencer obstáculos, o quanto serviu e ainda serve de exemplo de fibra e determinação. Minha querida te desejo muito, muito sucesso. Obrigada por tudo. Você será sempre a minha maior inspiração.”