“Dançar é conversar com Deus e conversar com Deus é uma coisa muito séria. Portanto, dançar é uma coisa muito séria”. Assim começava, em junho de 1990, a última entrevista de Johnny Franklin, bailarino, professor, coreógrafo e personagem insubstituível da história do ballet brasileiro, para a repórter Andrea Maltarolli, da revista Mulher de Hoje, dirigida por mim e publicada — na época — por Bloch Editores. Assisti a tudo bem de perto, mas não imaginei (estava tão alegre e animado), que aquele seria um dos nossos últimos encontros.
“Conversar com Deus”. Foram essas as palavras que ele escolheu para definir a grande paixão de sua vida. Para quem foi primeiro bailarino do Teatro Municipal do Rio de Janeiro e de São Paulo, dançou com os maiores partners da época, criou os grupos experimentais Ballet Society e Ballet da Juventude, coreografou mitos e lendas brasileiras, além dos espetáculos My Fair Lady, The Sound of Music, Vamos brincar de amor em Cabo Frio e Evita, não existia a possibilidade de não dar certo. Ele tinha que se dedicar à dança.
Foi um dos mais talentosos Maîtres de Ballet do nosso tempo. Seu currículo é por demais extenso. Começou a estudar na escola de Maria Olenewa, passou por cursos no American Ballet School, na escola de Martha Graham e no Conservatório Coreográfico de Paris, dirigido por Serge Lifar.
Nada escapava aos olhos sempre atentos do professor Johnny Franklin. Nada mesmo. De um “alinhavo” feito às pressas no vestiário para que a meia não desaparecesse antes da metade da aula, ao tradicional coque que não podia “dançar” no elástico frouxo e em grampos mal colocados, passando pelo collant e pela fita cuja cor correspondia à turma que cada aluna cursava.… todos os detalhes – grandes ou pequenos — passavam por sua inspeção rigorosa. Atrasos, por exemplo, eram inadmissíveis. Faltas, idem. Mas ninguém ousava questionar tantas regras de disciplina. Simplesmente obedecia e respeitava. Desde cedo, portanto, os alunos aprendiam os “porquês” de tanta importância. Mais que isso, certamente, aprendiam que disciplina era um dos pilares mais fortes para quem pretendia levar a dança a sério.
A Academia de Ballet Johnny Franklin sempre teve por objetivo unir dança e educação. Além disso, realizava anualmente um curso de férias e preparava também para o exame da Royal Academy of Dancing, de Londres. Nos cursos regulares (regido por regras e pela orientação da Royal Academy), as promoções de uma turma para a outra aconteciam através de exames realizados geralmente no mês de dezembro.
Embora fosse aluna da Academia que durante anos levou o seu nome, convivi pouco com ele. Posso dizer, entretanto, que conheci dois Johnny Franklin. O primeiro era severo, rigoroso, meticuloso, zangado e perfeccionista ao extremo.… me fez tremer e desistir em menos de um mês das aulas do curso de férias, deixando para trás grand-jetès e piruetas que nunca consegui fazer para total desespero dele. O segundo, doce e carinhoso. Quando a entrevista que citei no início foi para as bancas, diante de uma turma lotada, que mal conseguia disfarçar o espanto, fui recebida de braços abertos por um homem com os olhos marejados de lágrimas, que me chamou de princesa e disse ter resgatado através de mim e de Andrea a confiança perdida em nossos colegas de profissão.
Tânia Fonseca, bailarina e professora de ballet no Centro de Movimento Deborah Colker conviveu com ele diariamente durante muitos anos. E nem tenta disfarçar a emoção quando se refere ao “professor”.
“Em 1985 participei do espetáculo de fim de ano da Academia como bailarina convidada. Tinha acabado de deixar o Corpo de Baile do Teatro Municipal e não dá para negar que fiquei bem assustada com o tamanho do contraste. Ao mesmo tempo posso dizer que acabei aprendendo muito com ele, sempre um grande mestre. Dono de um carisma inigualável, sabia se fazer respeitar como ninguém. Era enérgico, sim. Muito. Mas — ao mesmo tempo – dócil demais, um verdadeiro “pai” para todos. No ano seguinte comecei a trabalhar como professora e lá fiquei durante muitos anos. Sem dúvida alguma foi uma grande perda para o mundo da dança. Suas lições foram preciosas e faço questão de guarda-las até hoje no trabalho e na vida pessoal. A saudade é enorme e só tenho a agradecer por ter recebido um tesouro tão grande.”
Com Camile Salles, bailarina e professora de ballet também no Centro de Movimento Deborah Colker, não foi diferente.
“Conheci Johnny Franklin ao mesmo tempo em que conheci o ballet. Foi meu primeiro, e durante longos anos, único mestre. Na época, aos sete, oito anos, não poderia ter noção do quão importante aquele senhor distinto e elegante seria para o resto da minha vida. Digo isso porque sei hoje do alto dos meus 37 anos, mãe, professora, que devo muito não só do que sou no ballet, mas do que sou na vida, a ele. Além de grande professor, era acima de tudo, educador. Ensinava como ninguém noções de respeito, cidadania e amor à arte. Não esqueço as vezes que mesmo de uniforme do colégio e tênis eu fazia uma reverência em plena Rua do Catete ao cruzar com ele. Johnny Franklin me ensinou muito mais do que pliés e jetés. Ensinou o que é se fazer respeitar, a admirar os mais experientes, a aceitar dividir espaços, a dar tudo de mim da mesma maneira independente de estar no corpo de baile ou no papel principal.”
Quando faleceu em 1991, vítima de um câncer no sistema linfático, Johnny Franklin deixou também uma enorme saudade no coração de todos e um vazio imenso, quase impossível de ser preenchido. Agora mais do que nunca deve estar conversando com Deus e dançando, dançando sempre.